Sinopse:
No século XVI, em plena época dos Descobrimentos, o rei de Portugal decide fundar Nova Lisboa, uma colónia na foz do Amazonas.
O objectivo: servir de base para a busca do mítico El Dorado.
Como tantas vezes sucedeu nas colónias portuguesas no Brasil, nela se cruzarão as vidas mais díspares: índios que procuram desesperadamente resgatar o seu deus, um padre envolvido em negócios obscuros, escravos negros obcecados por regressar a África, um tabelião que tudo faz para conquistar o amor da sua mulher, jesuítas empenhados em proteger os nativos dos abusos dos cristãos e bandeirantes cuja missão é capturar escravos.
Sitiada por índios canibais determinados em exterminar os intrusos, assolada pela fome, peste e traição, Nova Lisboa ainda terá de travar uma luta desesperada contra o exército de um homem que não parará diante de nada até consumar a sua vingança
Excerto de «Deuses Enfurecidos»
João Cunha empurrou a porta com força e irrompeu prisão dentro.
— Que se passa? Quero falar com o juiz! Exijo que me liberteis! Que se passa?
O padre ignorou o barbeiro e avançou para a arca. Urgia recolher a bolsa e correr para a nau. Onde andaria o seu escravo bárbaro? Teria conseguido roubar as jóias? Duvidava, a pobre criatura nem sabia do que se tratava, quanto mais encontrá-las na casa de Salvador. Fora uma pena, oferecera-as em troca de uma promessa que nunca fora cumprida. Ao recordar a rapariga tão bela que jurara que havia de conquistar, interrogou-se, mais uma vez, onde estaria.
— E onde está a bolsa!? — rosnou, aflito.
— Os índios vêm aí, não vêm? — Vicente procurou um buraco por onde fugir ou onde esconder-se. — Soltai-me!
O clérigo não respondeu. Retirou todo o conteúdo da arca. Nada. Espreitou debaixo do pesado móvel de madeira. Nada. Voltou a vasculhar as roupas onde devia estar a bolsa que lhe compraria o salvo conduto para fora dali. Nada.
Um grito soou ali perto e João Cunha virou-se, assustado, a papada a estremecer de pânico.
— Vou mesmo assim. Já Jezebel dizia que: «Aquele que acolhe um homem de Deus reserva um lugar nos Céus para si.» Certamente que não me proibirão de embarcar.
— E eu!? — guinchou o barbeiro, ao mesmo tempo que lançava o ombro contra as grades, tentando derrubá-las. — Ides deixar-me aqui, à mercê dos canibais!?
— Que Deus vos proteja, mas não tenho tempo de procurar a chave para vos soltar. Já Jesus Cristo dizia que...
Novo grito lancinante cortou o ar, mesmo ao lado da cadeia.
— Não interessa. Que o Senhor guarde a vossa alma.
Revolteou a mão em frente à cara, uma mímica grotesca do sinal da cruz, e correu para a porta.
— Bandido! Judas! Socorro! Aqui d’el-rei! Acudi! Índios! Índios! Olhai! Ele vai fugir! Socorro!
O padre ignorou os gritos e saiu. Ouviram-se três pancadas secas na porta e esta voltou a abrir-se e cuspiu o homem gordo. Na madeira atrás de si, vibravam três flechas.
— Estamos cercados — baliu.
Excerto de «Deuses Enfurecidos»
Encostado à parede de pedra, o índio respirava a custo e ardia em febre. O seu corpo tremia com convulsões e o peito contraía-se com dores. Delirava sobre caçadas na selva e chamava por uma mulher. Em suma, estava morto.
— Como é que isto aconteceu? — reflectiu Tomé Pires, tristemente.
— Foi Lobo. Lançou-nos uma maldição — Havia censura na voz de Francisco.
O branco não se atreveu a contrariá-lo. Não tinha forças para nada, muito menos para discutir contra o que talvez fosse verdade. Suspeitava de que o seu grande erro fora ter deixado entrar no forte o homem pequeno, mas este não apresentava nada que o levasse a suspeitar do que quer que fosse. Parecera-lhe inofensivo, ainda que meio enlouqu... De súbito, recordou o branco que trepara a paliçada e que os sitiantes tinham permitido que regressasse.
— Fui enganado. Era o mesmo homem.
Fazia tudo parte de um plano do velho louco e ele deixara-se levar com uma ingenuidade de... de...
— Mas quem conseguiria resistir àquele pequenote irritante a berrar ininterruptamente em redor do forte?
O resultado estava à vista. Dos cerca de cinquenta índios, só quinze estavam vivos, e, mesmo esses, em diversas fases de morte anunciada. À medida que os seus guerreiros tinham começado a adoecer em seu redor, que tinham surgido as primeiras queixas de fraqueza e dores de cabeça, que a febre fizera a sua aparição, para, depois, evoluir para intensas dores no peito, dificuldade em respirar, tosse violenta, por vezes com sangue, e, por fim, morte, o desespero e impotência haviam-no dominado. Nunca se sentira tão vulnerável: vulnerável a Lobo, que mesmo à distância o derrotava, e vulnerável aos caprichos do Demónio, que enviava aos mortais doenças, desastres e sofrimento para se divertir. Chegara a ponto de planear fugir na calada da noite, de embarcar numa das canoas encalhadas na praia e partir. Era um plano louco, no meio de tão hostil território rapidamente seria apanhado. Ponderou pedir santuário na missão jesuíta, mas duvidava de que Manuel Lobo respeitasse o lugar sagrado.
Fora então que Deus lhe estendera a mão e fizera aparecer a nau francesa. O preço exigido não era problema, dispunha de mais do que isso, o suficiente para si e para Francisco, e, ainda, lhe sobraria dinheiro para recomeçar a vida em algum lugar remoto, na Índia, talvez, longe das garras de Lobo. Chegara a considerar usar o dinheiro remanescente para salvar alguns dos colonos que não podiam pagar, mas, depois, ocorrera-lhe que se tratavam de degredados, criminosos para lá de qualquer salvação, homens sem escrúpulos e que o teriam entregado a Lobo sem qualquer remorso.
— Agora, sou eu que vos ofereço aos índios — a irónica reviravolta divertia-o.
Estava tudo preparado, embalara os seus poucos pertences e aguardavam somente o cair da noite para abandonarem sub-repticiamente o forte e remarem até à nau.
Saiu para o parapeito. Os seus guerreiros fitavam as árvores, vigiavam o inimigo. Sentados, agarrados aos arcos, com peito, pernas, braços, chão manchados de sangue, olhos vítreos, continuavam na morte a tarefa que Tomé Pires lhes incumbira em vida, numa lealdade inabalável. Ou, pelo menos, assim os imaginara quando colocara os cadáveres naquelas posições para fazer crer ao inimigo que estava tudo bem. Circundou o parapeito com cuidado para não tocar em ninguém, tentando não fazer ruir o castelo de corpos, quando sentiu que algo lhe agarrava o pé. Virou-se. Um índio, um morto que ainda não morrera, olhava-o com expressão de súplica e desespero, implorava-lhe que usasse a sua magia para o salvar. O bandeirante olhou em redor, constatou que ninguém o observava, e pontapeou o tupinambá na cabeça, fazendo-o perder os sentidos. Ia continuar a sua ronda, quando notou uma grande movimentação na orla da floresta.
Vários guerreiros afadigavam-se em redor da pilha de lenha que ali se encontrava havia vários dias. Serviria para fazer uma grande fogueira onde lançariam pimenta que, se tudo corresse como planeado, o vento carregaria até si. E supunha que simultaneamente lançariam um ataque. Quando seria? Calculava que em breve, muito em breve, senão Lobo ver-se-ia na contingência de ver escapar novamente a sua presa. Por outro lado, já não chovia há algum tempo e a madeira da enorme pilha já devia estar quase seca.
— Espera até amanhã, maldito! Depois, podes marrar o quanto quiseres.
Mas o seu algoz não estava disposto a fazer-lhe a vontade. Gritos, cornetas e flautas ecoaram pelo campo de batalha, provenientes da ponta da cidade mais afastada do forte.
Viu um enxame gigantesco pairar sobre a paliçada lá ao longe e, depois, precipitar-se sobre os defensores. Eram as mortíferas flechas dos tupinambá. O solo estremeceu sob os pés de centenas de guerreiros que corriam, aos urros, para a paliçada, transportando diante de si ripas de madeira entrelaçadas, como se de paredes se tratassem, destinadas a protegê-los dos tiros de arcabuzes, arcos e bestas.
O ataque final começara!
Em pânico, correu para o edifício central da fortaleza, patinou numa poça de sangue, por pouco não perdendo o equilíbrio e caindo muralha abaixo, equilibrou-se a custo e irrompeu no interior, aos gritos.
— Francisco! Anda! Temos de ir!
Algo lhe assobiou ao ouvido. Virou-se e deparou com três guerreiros armados com os seus tacapes. Não dispôs de tempo para reagir. Um deles agarrou-lhe as pernas e lançou-o ao solo, outro segurou-lhe um dos braços e o terceiro sentou-se no seu peito.
Excerto de «Deuses Enfurecidos»
Foi com crescente preocupação que Jean viu a selva em redor da vila colorir-se de azul, vermelho, verde, púrpura e muitas outras cores, como se o arco-íris se tivesse perdido entre as árvores. Mas, se este proporcionava beleza, a cena diante de si causava temor.
Significava que os guerreiros inimigos estavam posicionados em redor da vila e controlavam todos os pontos de saída.
— Ainda falta o mar — murmurou.
Era a esperança de muitos, aguentar o cerco um ou dois dias até conseguirem evacuar a cidade.
— Faltava — corrigiu o homem a seu lado na paliçada, ao mesmo tempo que afagava nervosamente a besta.
O padre virou-se. Dezenas de canoas baloiçavam ao sabor da corrente, o rio cintilava com as cores das penas dos guerreiros, como se enfeitado para uma festa.
Como fora aquilo acontecer?
Dois dias atrás, não tinha mãos a medir no amparo espiritual dos colonos e, agora, tinha-as ocupadas com flechas e setas, pronto para recarregar os arcos e bestas dos colonos. Dois dias atrás, a vida na vila arrastava-se, indolentemente, ainda que difícil, agora, era insustentável, provavelmente curta. Dois dias atrás, todos aguardavam, esperançados, a chegada de índios, agora só desejavam que fossem embora.
Num ápice, tudo ruíra: a bandeira não só regressara sem escravos como era perseguida por um exército em fúria. A Jean ainda custava a acreditar no desenrolar dos acontecimentos, tal a rapidez com que tudo acontecera. Para piorar as coisas, a caravela que chegara ao mesmo tempo que os bandeirantes largara logo ao nascer do Sol, mesmo a tempo de evitar o cerco dos índios inimigos, sob o olhar incrédulo dos colonos.
— Mas que vieram eles cá fazer? — questionavam-se todos. — Não falaram com ninguém, nem um dia ficaram e não há mais nenhuma cidade cristã num raio de muitas léguas. Que vieram cá fazer?
Não compreendia, ninguém compreendia, mas o que era certo era que a evacuação estava agora dependente exclusivamente da nau que aportara dias atrás, trazendo mais uma remessa de colonos, entre eles o louco que atacara barbaramente o padre João Cunha. Quase sorriu: era difícil simpatizar com o clérigo obeso.
— Ainda bem que terminámos o forte e a paliçada — comentou um cristão.
Os outros concordaram com acenos de cabeça. Apesar de muitos terem insistido que era trabalho em vão, que os índios em redor estavam domesticados pelos Jesuítas, o juiz insistira que a defesa da vila não fosse descurada.
Jean rogou uma prece de agradecimento a Deus e ao oficial do rei. Se não fosse por eles, muito provavelmente os índios já teriam irrompido por Nova Lisboa.
— E ainda bem que limpámos a vegetação em redor da cidade. Assim não se podem aproximar sem serem vistos.
Fora outra imposição do juiz, amaldiçoado na altura, abençoado agora.
Sem aviso, várias cornetas começaram a tocar e, pouco depois, juntaram-se-lhes os gritos de desafio e raiva dos índios. A barulheira subiu gradualmente de volume até Jean se ver forçado a tapar os ouvidos. De repente, todos se calaram. Índios, colonos, escravos, macacos, selva, vento fizeram o mais absoluto silêncio.
Um homem saiu dentre as árvores e avançou tranquilamente.
Jean reconheceu-o: era Satanás. Nu, com o corpo coberto de picadas e cortes, barba emaranhada a descer-lhe até ao peito, farta cabeleira espetada em todas as direcções e coberta de folhas e terra, olhar tresloucado, rosto distorcido pelo ódio, quem mais poderia ser?
— Padre, ides lá?
Jean aquiesceu. Uma vez que João Cunha recusava ir ao encontro do inimigo e tentar encetar diálogo, alegando estar muito doente, cabia-lhe a si, na qualidade de homem de Deus, a perigosa missão. Na verdade, a tarefa não o repugnava. Nunca o confessara, mas sonhava morrer como um mártir, deixar o seu nome para a posterioridade, ser recordado por uma qualquer acção grandiosa, um acto de bondade ou valentia tamanho que levasse as gerações vindouras a falar de si com assombro e admiração. Aquela era uma excelente ocasião.
— Sim, tentarei negociar a libertação das mulheres e...
Ia dizer crianças, mas calou-se. Não as havia em Nova Lisboa.
— Ide com Deus — disse um dos colonos.
Encaminhou-se para o portão na paliçada, mas nunca o chegou a transpor.
O Demónio parou, ainda fora do alcance das bestas e arcabuzes, e falou.
— Chamo-me Manuel Lobo...
O silêncio era sepulcral.
— ... Estou aqui para vos matar a todos.
Excerto de «Deuses Enfurecidos»
Mpetelu colocou a mão em concha atrás do ouvido, tentando ouvir, por cima dos urros dos macacos, do tamborilar da chuva, do zumbido dos insectos, do coaxar das rãs, algum som diferente que denunciasse os perseguidores.
Nada.
Havia muito que não ouvia os gritos de terror de negros e brancos ou os urros vitoriosos do inimigo, mas nem por isso se sentia mais descansado. Na verdade, era atormentado pela sensação de que estava a ser observado, que milhares de olhos espreitavam por detrás de cada folha, ramo e tronco, era atormentado por um desespero avassalador que ameaçava fazê-lo tombar de joelhos e resignar-se à morte, render-se aos lobos que o caçavam.
Lobos?
Desde o início da bandeira, que o tinham alertado para o terrível assassino que os perseguia, mas nunca levara muito a sério os avisos, tomara-os por tentativas pouco convincentes de assustar os escravos para os impedir de fugir. Fora um dos seleccionados para a escolta permanente de Tomé Pires, uma tarefa que desempenhara com pouco empenho e convicção, convencido que o bandeirante simplesmente tinha medo da selva. Afinal...
— Mpetelu?
O negro acordou das suas divagações. O tupinambá chamava-o. Deixara-se ficar para trás de novo. Assustado com a perspectiva de se perder naquele... inferno verde, como lhe chamavam os brancos, ainda para mais apinhado de índios ávidos do seu crânio, retomou apressadamente a marcha, por entre o zumbido furioso dos mosquitos, que exigiam que a sua refeição parasse quieta. Tentou limpar o sempre presente suor, que lhe descia pela cara, pescoço, braços, pernas, costas, que lhe empapava as pálpebras inchadas pelas picadas e lhe fazia arder os olhos, mas o calor sufocante e húmido tornava infrutíferas tais tentativas e viu-se forçado a desistir de tão ingrata tarefa.
Lançou-se na peugada do índio, um dos poucos companheiros que sobrevivera ao ataque dos homens de Lobo. Além dele e de outro índio, que transportava às costas um degredado ferido, acompanhavam-nos ainda Lukemi.
— Ao menos, temos um escravo para carregar as coisas.
As coisas? Riu amargamente. Quais coisas? Quase tudo fora abandonado durante o ataque e o pouco que fora salvo perdera-se nas duas emboscadas que tinham sido alvo durante a fuga e que reduzira o seu grupo de quinze a quatro pessoas. Já não contava com o branco ferido. Naquelas condições, era como se o índio o transportasse para um lugar mais conveniente para a morte o recolher. Quem mais teria sobrevivido? Seriam os únicos? E Nzuau? E...
Estacou. À sua frente, um trilho cruzava o caminho. Um calafrio de medo percorreu-lhe o corpo. Que lhe dissera o ianomamo sobre aqueles carreiros utilizados pelos animais e onde demónios espreitavam os viajantes incautos? Tentou recordar-se, mas as palavras do feiticeiro tinham-se, tal como ele, perdido algures na selva.
— Mpetelu. Aqui.
O índio chamava-o de uma pequena clareira. Lukemi jazia encostado a um tronco e, de olhos cerrados, indiferente à esquadrilha de mosquitos e outros monstros voadores que se banqueteavam com a sua carne, roubava um precioso momento de sono à árdua marcha. O índio que carregava o branco examinou o ferido e, com expressão preocupada, abanou a cabeça. No flanco do degredado, uma mancha vermelha espraiava-se de modo alarmante pela camisa esfarrapada, sitiada por uma névoa de pequenos e ruidosos pontos voadores, como se fosse uma mesa posta para os mosquitos.
Se a decisão dependesse de Mpetelu, o branco havia muito que teria sido deixado para trás, mas o tupinambá, como um cão que se recusa a abandonar o dono e se deita na campa à espera que este se levante, teimava em carregá-lo às costas por entre a selva impiedosa. O negro não pôde deixar de admirar a força e resistência do guerreiro que, sozinho, transportava o peso de dois homens e, ainda assim, não os fazia atrasarem-se.
— Bebe — o outro índio passou-lhe para as mãos uma liana que acabara de cortar.
Mpetelu agarrou com avidez a ponta oferecida e saciou-se com a água límpida que a planta escondia no interior, como se com medo que a que havia no céu se esgotasse.
— Vamos.
A penosa marcha recomeçou. Mpetelu seguiu atrás de Lukemi, demasiado fatigado para implicar com o negro, para afastar os ramos que se estendiam para lhe arranhar o corpo, com as raízes que o faziam tropeçar, além do ponto de se importar que uma flecha pusesse termo à sua vida, que...
— Alto.
O índio inspeccionou uma zona limpa de vegetação debaixo de uma enorme ceiba, à procura de surpresas desagradáveis, como tocandiras.
— Acampamos aqui — declarou, findo o exame.
Lukemi deixou-se abater contra o tronco e ajeitou-se para dormir.
— Escravo, vai buscar água!
O negro saltou como uma mola e ia trotar obedientemente até ao regato mais próximo, quando se apercebeu que fora Mpetelu que falara.
— Vai tu, escravo! — respondeu, com um grunhido de ódio.
— Preto estúpido! — riu o outro. — Já te disse, sou um chefe de aldeia. — Levantou uma mão para impedir Lukemi de falar. — Ser escravo não está aqui — rodeou o pulso com a mão, a simular grilhetas —, mas aqui — apontou para a cabeça. — Tu nasceste para me servir, nada vai mudar isso e tu sabe-lo bem, a julgar pela velocidade com que te ergueste para cumprir a ordem. Um dia, terás o prazer de me limpar os pés e me carregar. Até lá, está calado, que a tua voz pode atrair Lobo.
— Mas és tu que estás a fal...
— Cala-te, já disse!
Lukemi fitou-o com olhos loucos de ódio.
— Quero-te ver a dar ordens com uma flecha no peito — resmungou num murmúrio.
— Que disseste, escravo?
O negro não respondeu. Virou-se e fingiu dormir.
Excerto de «Deuses Enfurecidos»
— Senhora, estou farto de esperar por vós. Já não aguento mais. Deverei dizer «farto», licenciado?
— Se me permitis, é minha opinião que ficaria melhor «Senhora, o meu coração anseia por vos voltar a ver, todas as manhãs, os meus olhos se enchem de lágrimas ao não poderem deliciar-se com vossa beleza, no meu peito...»
— Anseia? Que quer dizer, licenciado?
— Signif... quer dizer que... que tem saudades.
— Então, não era melhor dizer «o meu coração tem saudades», licenciado?
— Julgo que a vossa amada apreciará mais se usardes «anseia», que denota que tivestes uma educação refinada.
— Perdoai, licenciado, mas ainda penso que ficaria melhor «tem saudades ». Não sei se ela entenderia a outra palavra.
— Que seja. «O meu coração tem saudades...»
— Pensando, melhor, deixai ficar «anseia», licenciado.
— Como quiserdes, bom homem.
— Ou talvez «tem saudades»... Não sei... Que achais, licenciado?
Salvador teve de se conter para não espetar a pena no degredado diante de si. Ditava-lhe a carta de amor havia mais de uma hora e nem uma página escrevera. Pelo canto do olho, estudou a fila dos clientes: outro criminoso que pretendia que escrevesse uma, outra, petição a el-rei, clamando a sua inocência e pedindo o levantamento do degredo — fazia-o quase diariamente, apesar de saber que as missivas seguiriam todas na mesma embarcação, o que faria que o monarca recebesse várias dezenas de pedidos
iguais de uma assentada —, um marinheiro que pretendia escrever o testamento após ter sido acometido de uma febre que o lançara no delírio durante três dias, e um idoso que insistia com sobrinho em Portugal para este se lhe juntar em Nova Lisboa, temendo morrer sem herdeiros, mas omitindo que a sua fortuna se resumia a uma cabana que todas as noites perdia um bocado para o vento e para a chuva e um negro meio cego.
Seria aquele o seu destino, escrever mensagens de amor, epitáfios, petições e outros para os analfabetos da colónia? Acaso...
Uma gota de água tombou no tampo da mesa e, não pela primeira vez, Salvador deu graças pela chegada da chuva. Sem uma palavra, num entendimento mútuo de quem sabia o que os esperava, todos dispersaram e correram para suas casas.
Misericordiosamente, as nuvens aguardaram que Salvador lá chegasse antes de despejarem o seu conteúdo. Ou, talvez, fosse um acto de crueldade, reconsiderou, ao aperceber-se de que, lá dentro, a mulher se entretinha com o seu passatempo favorito: queixar-se.
— Desde que estive na praia que os meus pés não param de me incomodar — ouviu através da porta. — Tenho uma comichão que...
A chuva começou a cair com intensidade e Salvador não teve outra escolha a não ser entrar.
— Aqui estais vós, senhor! — guinchou Ana, como se lamuriar-se a Brásia não fosse suficiente e precisasse de um alvo apropriado para a sua ira.
O licenciado teve somente tempo de verificar que, além da escrava, de Mpetelu e de Ebrëwë, regressado da caça, estava presente um outro negro antes de ser açoitado por uma barragem ininterrupta de queixumes.
— Senhor, acudi-me — baliu Ana. — Este sítio está pejado de monstros! Ontem, eu e Brásia íamos a passar por uma árvore, quando notámos milhares de bichos pendurados de pernas para o ar. Tinham dentes afiados como... como... — abraçou-se à escrava, aterrorizada. — Escapámos porque estavam entretidos a comer uns frutos e não nos viram!
Ebrëwë aproximou-se de Salvador e sussurrou:
— Morcegos. Inofensivos.
— Mas, Ana — disse o licenciado, numa voz suave. — Eram só morcegos. Não fazem mal...
— Dizeis vós! — guinchou, indignada que tamanho sofrimento fosse tão facilmente reduzido a nada. — E o demónio que urinou e cag... defecou em cima de mim!? E me atirou com ramos? Por pouco, não me atingia na cabeça. Podia ter morrido!
O Ianomamo sorriu com prazer.
— Macaco-uivador. Não convém passar debaixo da árvore onde...
— E isto!? — ladrou Ana, irritada por o marido ter arranjado um aliado no índio. Abriu a porta e a água invadiu a casa, o vento rodopiou pelo interior da habitação, derrubando utensílios e levantando palha do chão, furioso por se sentir encurralado. — Também é imaginação minha?
— Ninguém disse que era mentira...
— E aquilo? — gritou, para se fazer ouvir por cima do rugido da tempestade. — Sou só eu que estou a ver? — Apontou para o céu, onde inúmeros relâmpagos corriam desordenadamente, tecendo no firmamento uma teia gigante de luz. — E este ribombar, alguém mais o ouve? — colocou a mão em concha no ouvido, como se tivesse dificuldade em ouvir o estrondo ensurdecedor e ininterrupto dos trovões.
— Ninguém disse que era mentira — assegurou Salvador, num tom de voz tranquilizador.
Fechou a porta e colocou-lhe o braço em redor da cintura, tentando conduzi-la para um banco. Ana libertou-se com um gesto brusco e foi encostar-se à escrava.
— Quem é este homem, Mpetelu? — perguntou o licenciado, magoado por a esposa o ter rejeitado mais uma vez e em público.
— E esta casa? — recomeçou aquela, não se dando por vencida. — Pensar que em Portugal vivia numa residência com sala grande para recepções e refeitório, cozinha e quatro quartos, um deles o meu guardaroupa privado. E isto somente andar de cima. No térreo, dispúnhamos de casa de lenha, adega, palheiro, cavalariça e cisterna. Deverei mencionar que havia ainda duas casas anexas, para habitação dos criados? E que tínhamos privada para fazer as nossas necessidades, sem que um qualquer índio abrutalhado — esboçou um gesto na direcção de Ebrëwë, que sorriu descaradamente — viesse espreitar. Aqui, as paredes mal se seguram de pé e estou destinada a dormir lado a lado com os escravos! Eu, uma senhora do meu estatuto, Dona Ana Nunes, tenho de me sujeitar aos olhares indiscretos de pretos e índios! Se me quero sentar, tenho de o fazer numa tábua pousada em dois toros de lenha, a que só muito
generosamente se pode chamar de banco! E que tem de estar junto à parede por não dispor de encosto para costas, quanto mais cobri-lo com almofadas ou panos aveludados para torná-lo confortável! — Salvador enrubescia e cerrava os punhos a cada palavra — E no chão!? Em vez de peles ou tapetes, temos palha, como um qualquer camponês analfabeto! E sempre molhada da chuva e coberta de lama! E se quiser descansar os pés num banco? Pois, sim, isso...
— Pois, sim — cortou Salvador, de cabeça perdida —, pois sim que tínheis uma residência! O que vos esqueceis é que dessas divisões todas, só a cozinha vos pertencia, o resto estava penhorado por dívidas; nos anexos dos criados vivia um único escravo preto, que comia os ovos que roubava no galinheiro do vizinho, pois vós não o alimentáveis; as cavalariças e adega estavam vazias, cavalos e, vinha havia muito, que tinham sido vendidos; as vossas almofadas não cobriam nenhum banco, pois o vosso pai perdera
quase toda a mobília ao jogo; e quanto à palha, não tínheis nenhuma porque tivestes de a comer quando a comida acabou!
Um pesado silêncio abateu-se sobre os presentes. Salvador soube imediatamente que fora longe demais, mas a mulher fazia-o perder as estribeiras. Não só o desprezava cada vez mais, como as queixas aumentavam a cada dia que passava. Bailou-lhe na mente a louca ideia que ela iria abrir a porta e desaparecer na tempestade, para nunca mais voltar. O pensamento aterrorizou-o e, simultaneamente, emprestou-lhe uma sensação de alívio intenso. Ultimamente, era assaltado por dúvidas em relação ao casamento, ainda que dissipadas sempre que a rapariga o brindava com um dos raros sorrisos que lhe dispensava ou quando faziam amor — muitas vezes, contrariada, era certo. Os olhos de Ana humedeceram e lágrimas deslizaram pelas suas faces coradas. Arrebatou o vestido e com uma expressão simultaneamente amuada e enfurecida, trotou, não para o exterior, mas para o quarto, correndo a cortina com violência, uma promessa das futuras batalhas que Salvador teria de travar. Até ceder!
— Da próxima vez, bate-lhe — aconselhou o ianomamo.
Excerto de «Deuses Enfurecidos»
João Cunha empurrou a porta com força e irrompeu prisão dentro.
— Que se passa? Quero falar com o juiz! Exijo que me liberteis! Que se passa?
O padre ignorou o barbeiro e avançou para a arca. Urgia recolher a bolsa e correr para a nau. Onde andaria o seu escravo bárbaro? Teria conseguido roubar as jóias? Duvidava, a pobre criatura nem sabia do que se tratava, quanto mais encontrá-las na casa de Salvador. Fora uma pena, oferecera-as em troca de uma promessa que nunca fora cumprida. Ao recordar a rapariga tão bela que jurara que havia de conquistar, interrogou-se, mais uma vez, onde estaria.
— E onde está a bolsa!? — rosnou, aflito.
— Os índios vêm aí, não vêm? — Vicente procurou um buraco por onde fugir ou onde esconder-se. — Soltai-me!
O clérigo não respondeu. Retirou todo o conteúdo da arca. Nada. Espreitou debaixo do pesado móvel de madeira. Nada. Voltou a vasculhar as roupas onde devia estar a bolsa que lhe compraria o salvo conduto para fora dali. Nada.
Um grito soou ali perto e João Cunha virou-se, assustado, a papada a estremecer de pânico.
— Vou mesmo assim. Já Jezebel dizia que: «Aquele que acolhe um homem de Deus reserva um lugar nos Céus para si.» Certamente que não me proibirão de embarcar.
— E eu!? — guinchou o barbeiro, ao mesmo tempo que lançava o ombro contra as grades, tentando derrubá-las. — Ides deixar-me aqui, à mercê dos canibais!?
— Que Deus vos proteja, mas não tenho tempo de procurar a chave para vos soltar. Já Jesus Cristo dizia que...
Novo grito lancinante cortou o ar, mesmo ao lado da cadeia.
— Não interessa. Que o Senhor guarde a vossa alma.
Revolteou a mão em frente à cara, uma mímica grotesca do sinal da cruz, e correu para a porta.
— Bandido! Judas! Socorro! Aqui d’el-rei! Acudi! Índios! Índios! Olhai! Ele vai fugir! Socorro!
O padre ignorou os gritos e saiu. Ouviram-se três pancadas secas na porta e esta voltou a abrir-se e cuspiu o homem gordo. Na madeira atrás de si, vibravam três flechas.
— Estamos cercados — baliu.
Excerto de «Deuses Enfurecidos»
Sonhou.
Sonhou com Deus.
— Porque me abandonaste? — perguntou-lhe.
O Senhor pareceu surpreendido.
— És o segundo que me pergunta tal. Se deixei o Meu filho na cruz, porque haveria de te socorrer a ti?
— Então, é verdade? Não Te interessas pelo destino dos homens, como sempre me disseram?
Mas já ninguém o ouvia.
Amargurado, concluiu que fora enganado pelos cristãos, que tudo não passava de uma grande mentira. Ia morrer, mas não estava assustado. O que o martirizava era pensar que os antepassados talvez não lhe perdoassem o devaneio religioso e não o recebessem na aldeia subterrânea.
— Perdoai-me, tio.
— Pronto, Mbelenadu, descansa — urgiu Nzuau.
Mbelenadu? O nome, de que tanto se orgulhava semanas atrás, pareceu-lhe estranho, afrontoso.
Um nome de brancos.
Os dias transformaram-se em semanas. Nzuau cuidava dele, dava-lhe a comida à boca, com paciência e ternura, mas também o primo lutava contra a fome, sede e desespero, e, lentamente, Mbelenadu definhava e perdia
a batalha contra a morte. Não sofria. A febre tornava-o alheio ao que se passava em redor. Não sentia a urina e fezes líquidas que deslizavam por entre as tábuas em cima e escorriam pelo seu corpo, não ouvia os gritos e choro dos que sucumbiam ao desespero ou viam perecer entes queridos, não se apercebia dos marinheiros jogarem ao mar os corpos dos negros mortos sufocados, com as bocas escancaradas a escorrer saliva e olhos esbugalhados, não se enojava com os nacos de carne fumada apodrecida e biscoito bolorento que boiavam na companhia de larvas e baratas na água suja que lhes serviam como refeição, não se apercebia dos frenesins que, ocasionalmente, agitavam a coberta, quando um dos homens, em desespero e fúria, batia no tabuado, pontapeava freneticamente e arrancava olhos e pele com
as unhas sujas de bosta e urina, numa tentativa vã de levar ar aos pulmões, não sentiu a luta que Ntinu travou com o vizinho, uma contenda desesperada
por espaço para respirar e onde o primo conseguiu estrangular o rival, não viu os marinheiros arrancarem os bebés de colo às mulheres histéricas e atirá-los borda fora, para evitar que se consumissem a alimentá-los e morressem também, não ouviu o mergulho de um escravo que, numa das poucas idas à superfície, se atirou ao mar, arrastando atrás de si mais um
companheiro, e que afundou imediatamente, puxado pelas correntes, não sofria com o calor opressivo, não era atormentado pela sede intensa, não sentia a fome que se banqueteava com o seu corpo, não se apercebia de que um exército de ratos, moscas e baratas faziam um festim com a carne putrefacta e infectada das suas costas, que o comiam vivo.
Que a escuridão o comia vivo.
E, por fim, quando o vigia gritou «terra à vista», Wene já não o ouviu. Dançava, caçava e bebia na companhia dos seus antepassados, no seu paradisíaco
mundo subterrâneo.
O pesadelo tinha terminado.
Excerto de «Deuses Enfurecidos»
Atirou duas pedras às portadas, que permaneceram teimosamente fechadas. A praguejar baixinho, começou a afastar-se. As ruas estavam mergulhadas na escuridão da noite sem luar, somente quebrada pelo ténue tremeluzir de uma lamparina de azeite no interior de uma ou outra casa ou uma vela acesa diante do nicho de um santo. A névoa que envolvia a mente do padre dissipou-se ligeiramente e foi substituída por preocupação. Era do conhecimento de todos que bandidos patrulhavam as ruas desertas e escuras, em busca de... Virou-se subitamente. Ouvira um som... Perscrutou a escuridão e viu-se diante de dois pontos vermelhos que o fitavam gulosamente. — Satanás! — berrou. — Afastai-vos! Voltai para o vosso covil! O gato miou de desprezo e saltou para o telhado por detrás, desaparecendo entre os beirais. — Ainda não vos calastes? — ladrou um homem, abrindo uma janela com violência. — Ide dormir! João Cunha conhecia-o. A resposta não se fez esperar. — Castelhano excomungado! — bradou. — Ide dar ordens na vossa terra! Já esquecestes Aljubarrota? Quereis que chame uma padeira para vos avivar a memória? — Não sou castelhano, sou galego. E ficai sabendo que... — Ainda estais a falar? — cortou o clérigo, apontando um dedo ameaçador ao outro. — Não sabeis o que diz o ditado? «Todas as coisas boas que vêm de Castela são as que não falam.» O interpelado abriu a boca para responder, mas reconsiderou e fechou as portadas com violência. — Isso, fugi! Fugi, que a padeira vem aí! Brandiu um punho para as alturas e aguardou que o outro regressasse. Ao compreender que tal não ia acontecer, retomou o caminho. Ainda não tinha chegado ao final da rua, quando ouviu novo barulho. Virou-se a tempo de distinguir um vulto que caminhava na sua direcção. Apreensivo, enveredou por uma artéria lateral. Eram muitas as histórias que conhecia de roubos, ou pior, cometidos na calada da noite, quando Deus e os homens dormiam o sono dos justos. Olhou em redor, em busca da protecção dos quadrilheiros, mas não viu ninguém. Virou para outra rua e encostou-se à parede, coração a bater descompassado e olhos esbugalhados de medo. Espreitou e ali estava o vulto, na sua peugada, como um cão atrás da lebre. — Aqui d’el-rei! — bradou, na esperança de atrair a atenção dos quadrilheiros ou, no mínimo, de fazer sair alguns vizinhos de suas casas, obrigadospor lei a acorrer à voz de socorro. Nada aconteceu. — Ides todos arder no Inferno — ameaçou, para a escuridão. Estugou o passo e em breve corria. Virou à esquerda e, depois, à direita, escorregou num monte de esterco, largou o archote, levantou-se e recomeçou a sua corrida sem se preocupar em recuperá-lo, foi contra uma pilha de caixotes, contornou um chafariz, espezinhou um monte de lixo, espantou dois porcos que se tinham acomodado para a noite, tropeçou num buraco na calçada, foi perseguido por um rafeiro, dobrou uma esquina, depois, outra, estatelou-se no corpo de um cão que alguém atirara para a rua e, magoado no joelho, arrastou-se para um vão de escada. O tempo arrastou-se, penosamente, até João Cunha se atrever a espreitar para a rua escura. Colocou a mão em concha em redor da orelha e escutou. Silêncio. Mais tranquilo, aguardou ainda algum tempo, aproveitando para massajar ao de leve o joelho dorido. Quando nenhum som suspeito lhe chegou aos ouvidos, quando estava certo que despistara o seu perseguidor, levantou-se e coxeou pela rua. Não dera ainda dois passos, quando uma mão pousou no seu ombro. — «Eu vos dei vida, defendei-a!» — gritou. — Livro do Génesis! — acrescentou, ao mesmo tempo que agarrava firmemente a mão do assaltante e empunhava uma faca.
Excerto de «Deuses Enfurecidos»
A prisão continuou o seu caminho, indiferente à angústia de Salvador. À irritação que lhe causava o padre, juntava-se agora uma sensação de claustrofobia que crescia à medida que os dias passavam e a nau minguava. O calor, a opressão do clima pesado, o espaço apertado onde se acotovelavam marinheiros nos seus afazeres, os passageiros dormindo no convés, jogando às cartas e dados ou contemplando estupidamente o infinito azul, o odor a vomitado e urina, as discussões que surgiam do nada e que, por pouco, não degeneravam em violência, a sede, agravada pela ração salgada e apodrecida, coberta de vermes, as pulgas e piolhos que se banqueteavam naqueles corpos porcos e sujos, o desconforto e enjoo causado pelo constante baloiçar e pelas investidas das ondas faziam Salvador afundar num torpor em que as piadas inconvenientes do padre deixaram de importar. Sentia que estava morto, que se encontrava no Inferno, pois não tinha dúvidas de que não poderia haver pior sofrimento do que aquele.
E quando compreendia que ainda estava vivo, rogava à morte que o fosse buscar, que, na sua misericórdia, o poupasse àquele tormento, mas aquela não lhe fazia a vontade, não cometia a insensatez de fazer a sua aparição na miserável caixa de madeira à deriva somente para lhe agradar. Assim, cada vez se afundava mais no seu torpor. Sentia-se febril, fraco, como se tudo não passasse de um sonho do qual não conseguia acordar.
Por isso, quando os marinheiros começaram a gritar ao avistar golfinhos a rodopiar em redor da nau, ignorou-os. Quando bateram palmas a um bando de andorinhas que fez um voo rasante à embarcação, não ligou. Foi só quando o vigia gritou «terra à vista» que, lentamente, ressuscitou.
A esfregar os olhos remelosos e a coçar a barba desgrenhada, caminhou vagarosamente até à amurada. Diante de si, estendia-se uma floresta interminável e que pululava de vida. Macacos saltavam de ramo em ramo, pássaros esvoaçavam por todo o lado, as copas das árvores agitavam-se com a brisa, como que a dar-lhe as boas-vindas. Terra! Caiu de joelhos e deu graças a Deus.
O pesadelo tinha terminado.
Conto «A Feia Adormecida»
A Feia Adormecida
O cavaleiro segurou a espada com firmeza e aguardou. Não conseguia ver o guarda, mas ouvia os seus passos enquanto vasculhava a pequena arrecadação, à procura do intruso que julgava ter ouvido. Escondido entre as pipas de vinho, o herói vislumbrou a cara abrutalhada e maldosa do soldado que se aproximava do seu esconderijo e cheirou o seu hálito a cebolas e dentes podres. Viu dedos sujos de terra agarrarem a pipa atrás da qual se refugiara e preparou-se para combater.
– Ratos – resmungou o guarda no último instante.
Afastou-se apressadamente e saíu.
O cavaleiro embainhou a espada, coração aos pulos dentro do peito. Faltara pouco para ser descoberto, tão, tão perto do seu objectivo. Aguardou até o som de passos desaparecer e abriu a porta cuidadosamente. Espreitou para o curto corredor e não viu ninguém. Com passos decididos dirigiu-se ao lanço de escadas que o levaria ao último andar da torre do castelo, onde sabia estar aprisionada... Foi tomado de uma fúria cega e teve de parar para se acalmar. Haveria tempo para castigar os culpados, agora tinha de se apressar.
Subiu silenciosamente os degraus e parou um pouco abaixo da pequena câmara no topo. A pouca luz que conseguia espremer-se pela diminuta fenda na parede de pedra grossa que servia de janela revelava uma mesa ao centro, onde uma sentinela guardava a porta de um quarto que ocupava metade da câmara.
O herói estudou atentamente o guarda, o derradeiro obstáculo entre ele e o seu prémio. Esparramado desconfortavelmente na mesa, um fio de baba deslizava-lhe pela barba negra e suja e ressonava tão alto que dir-se-ia que uma tempestade entrara no seu estômago por engano. Dois garrafões de vinho vazios a seus pés juravam que poderiam passar ali as hordas de Gengis Cão que nem um músculo mexeria.
Avançou pé ante pé, imobilizou-se quando o guarda resmungou algo, coçou um sovaco e se ajeitou na periclitante cama, agarrou a maçaneta da porta e rodou devagar. Não estava trancada.
Entrou no quarto escuro e aguardou que os olhos se acostumassem à escuridão. Relutantemente, as trevas revelaram uma cama enorme, emoldurada por um dossel com cortinados de renda, onde jazia uma rapariga.
– É ela!
Aproximou-se cautelosamente, o coração a transbordar de alegria. Por fim, encontrava-a, a bela princesa enfeitiçada pela bruxa má, condenada a dormir eternamente até um belo príncipe – ele – a despertar com um beijo. Não lhe distinguia as feições, tapadas pelos longos cabelos louros, mas isso não o impediu de lhe depositar um beijo reverente nos lábios macios.
– Acordai, formosa dama. Eu vos liberto da maldição que vos amarra ao sono eterno.
A princesa abriu os olhos e sorriu para o príncipe.
– Sabia que viríeis, meu amado!
Deixou que o herói a ajudasse a levantar e caiu nos braços do seu destemido salvador. O casal, unido por um amor puro e infinito, beijou-se longamente. E viveram felizes para sempre.
Ou assim desejaria o cavaleiro.
Na verdade, o que aconteceu foi:
– Acordai, bela dama. Eu vos liberto...
A bofetada cortou-lhe a palavra e o lábio.
– Bandido! Canalha! Que espécie de tarado entra assim no quarto das pessoas?! Guardas! Socorro!
O herói agarrou a cabeça para parar o sino que lhe badalava dentro do crânio. Percebeu que uma cadeira se aproximava a grande velocidade da sua cabeça e, instintivamente, atirou-se ao chão.
– Gatuno! Ladrão! A atacar donzelas indefesas! Guardas! Acudi! Guardas! Eu já te digo!
A princesa agarrou uma vassoura esquecida a um canto e começou a malhar no intruso, que tentou lançar-se para debaixo da cama para fugir à furiosa investida. A precipitação fê-lo dar uma tremenda cabeçada na tábua do estrado e, com o solo a rodopiar em seu redor, rastejou para a toca.
– Cobarde! Bandalho! Sai daí! Guardas!
A porta escancarou-se e o rei e a rainha entraram de rompante, seguidos de uma manada de soldados. Um deles abriu as portadas da janela e revelou uma cena que os deixou boquiabertos: a princesa tentava desalojar um ladrão, escondido debaixo da cama, puxando-o pela perna, ao mesmo tempo que este se agarrava ao pé do enorme móvel com o desespero de um condenado à forca.
– Mas... que se passa aqui? – balbuciou o rei.
– Este bandido atacou-me enquanto eu dormia a sesta – explicou a princesa enquanto escarafunchava com o cabo da vassoura o espaço onde o intruso se escondera.
– Acho que já podes parar, filha. E vós, sai daí imediatamente.
– Não! Ela vai desfazer-me.
– Podemos fazer uma fogueira – sugeriu o couteiro do rei. – O fumo obrigá-lo-á a sair.
– Não creio que seja necessário.
– Com as lebres resulta sempre – resmungou aquele, afastando-se.
O monarca agachou-se e rosnou para o intruso:
– Sai, senão mando os guardas tirarem-vos daí.
O cavaleiro, algo tranquilizado por ver a princesa pousar a vassoura, rastejou para o centro do quarto, onde foi cercado pelos soldados.
– Explicai-vos!
– Sua... sua majestade... vim salvar a princesa que vive prisioneira neste castelo, aquela que comeu uma maçã enfeitiçada por uma bruxa que a lançou num sono profundo e do qual só acordará...
– Prisioneira?! Bruxa?! Aqui?! Quem te disse isso?
– Bem... talvez não especificamente aqui... Num castelo... Por aí... algures... – Revolteou a mão, assim explicando que se situava nas redondezas, ainda que não soubesse exactamente qual, mas que estava prestes a descobri-lo.
– Então... Entrais em todos os castelos que encontrais à procura dessa princesa?!
– Dito dessa maneira soa como se fosse uma grande tolice... – murmurou o intruso, envergonhado.
Os guardas riram e o rei aproveitou para estudar o homem diante de si. Bem, não um homem, mas um miúdo: o bigode ainda não passava de uma penugem que besuntara com graxa para parecer farfalhudo, da barba, nem sinal, o elmo não era mais que um tacho roubado numa qualquer cozinha, a armadura resumia-se a duas chapas de ferro amolgadas unidas com cordéis, a espada estava torta e roída pela ferrugem, o escudo consistia em três ripas meio apodrecidas tiradas a uma pipa de vinho e da cintura para baixo vestia umas calças esburacadas que deixavam entrever umas pernas brancas e escanzeladas.
O rapaz disfarçado de cavaleiro, por seu turno, estudava a princesa e também não estava impressionado. A luz do Sol revelava toda a sua gloriosa... fealdade. Uns dentes enormes que pareciam não caber na boca e lhe conferiam um aspecto equino dominavam-lhe a face, as pálpebras não abriam totalmente, como se tentassem esconder os olhos estrábicos, e uma juba enorme de cabelo eriçado coroava-lhe a cabeça. O rapaz fitava-a, boquiaberto, quando percebeu que o rei falava com ele.
– ...Não gostar de ver o meu castelo invadido desta maneira, acredito que as vossas... que as tuas intenções não eram más. – Presenteou o intruso com um olhar de pena. – Vou mandar um guarda acompanhar-te a casa.
– Sua... sua majestade... agradeço imenso, mas não é necessário. – Levou as mãos às orelhas, revelando o castigo que lá o esperava. – Posso ir sozinho.
– Se assim o desejas. Como vais embora? A pé?
– Não, majestade. Tenho o meu fiel corcel, Relâmpago, lá em baixo.
O rei espreitou pela janela.
– Referes-te ao jumento que está a pastar no jardim?
– As minhas buganvílias! – guinchou a rainha. E trotou para fora do quarto.
– Pai! Vais deixar este campónio ir assim, sem o castigar? – sibilou a princesa, estalando a queixada como se prestes a desfazê-lo à dentada. – Atacou-me!
O rei olhou para a rapariga e, como sempre, teve de fazer um esforço para não desviar o olhar de tão feia carranca. Era a sua filha mais nova, quase com vinte anos e ainda solteira. Os seus domínios eram pequenos, minúsculos, para ser mais exacto. Entalado entre dois reinos poderosos, ainda não tinha sido conquistado por nenhum deles por não ter nada que valesse a pena cobiçar. O pior a que se sujeitava era ser atravessado ocasionalmente pelos exércitos dos vizinhos quando os respectivos reis e nobres se enfadavam de caçar raposas e decidiam entreter-se com uma guerra. A pobreza do seu reino salvava-o da cobiça dos outros monarcas mas também fazia como que nenhum tivesse interesse em casar a prole com os seus descendentes, muito menos com aquela sua filha. Os príncipes dos outros reinos, sempre ansiosos por enfrentar os exércitos inimigos, tremiam de pavor com a perspectiva de enfrentar a princesa, dotada de uma cara celebremente feia, só equiparada ao seu terrível feitio.
– Pai! Exijo que o castigues! Estás a ouvir, pai?
O rei olhou para a filha, que o fitava com expressão zangada. Como estava farto de aturar aquele feitio caprichoso e mimado. Quem dera... Subitamente, uma ideia tresloucada bailou-lhe na mente.
– Miúdo... Nobre cavaleiro, julgo ter uma tarefa ao nível da tua... da vossa bravura.
O herói levantou o queixo e empinou o peito.
– Dizei, majestade. Não ousaria recusar qualquer pedido vosso, ainda que fosse ir ao inferno arrancar os chifres do Diabo, ou ao fundo do mar...
– É esse o espírito. E ainda sereis amplamente recompensado: dar-vos-ei a mão da princesa em casamento.
O cavaleiro olhou para a rapariga que o fitava como um touro enraivecido diante da capa do toureiro.
– Não sei...
– Compreendo. – O monarca deu-lhe uma palmadinha condescendente no ombro. – Pedirei a outro, então.
O herói espetou ainda mais o peito.
– Aceito! – Tentou empunhar a espada para tornar a proclamação mais dramática, mas a ferrugem prendeu a lâmina à bainha.
– Aceitas?! – uivou a princesa. – Aceitas?! Não vou casar com um plebeu malcheiroso! Recusa imediatamente! Não te atrevas! Como-te o fígado em paté! Faço cabidela com o teu sangue! Ouviste?! Recusa já!
– Vinde. – O rei conduziu o cavaleiro para fora do quarto. –vamos conversar aqui fora onde não há tanto barulho. Reparaste, certamente, que a minha filha gosta de vós.
– Gosta?!... Insultou-me!
– Ora – o monarca esboçou um gesto de desprezo –, todos sabemos que as mulheres gostam de se fazer difíceis.
– Ameaçou-me!
– Um exagero. Ela não gosta de arroz de cabidela. – Ao notar que o outro não parecia convencido, decidiu tentar outra abordagem. – Quanto à tarefa que tenho para vós, só ao alcance dos mais valentes...
O cavaleiro levou uma mão ao coração, pousou a outra no punho da espada, desta vez não ousando tentar desembainhá-la, jogou a cabeça para trás e anunciou com altivez:
– Considerai-a realizada.
– Perfeito! Assim que matardes o dragão que ate...
– D... D... Dra?... – gaguejou o rapaz. O seu peito murchou como um balão vazio.
– Sim, um dragão que vive nas montanhas e aterroriza o meu reino. Claro que se tiverdes medo...
O cavaleiro pôs-se em bicos de pés.
– Nunca! Só achei que fôsseis pedir algo mais digno da minha bravura que matar uma lagartixa gorda. Volto em breve com a cabeça do bicho.
– Para que quero eu uma cabeça de dragão? Para sujar tudo com sangue, espalhar cheiro a podre pelo castelo e atrair moscas, baratas e ratos? Trazei-me antes o seu tesouro.
– Tesouro?
– Evidentemente. Preciso desesperadamente de dinheiro para pagar horas extraordinárias aos soldados, para que vigiem o galinheiro à noite.
– Galinheiro?
– É onde se guardam as galinhas. Todas as noites várias são roubadas por falta de vigilância. Bem, espero ver-vos de volta daqui a uns dias. – E enxotou-o para fora do castelo.
O cavaleiro montou o jumento e dirigiu-se para a cordilheira ao longe. À medida que se aproximava, as povoações tornavam-se mais pequenas e menos frequentes e quando chegou ao sopé da montanha começaram a surgir vestígios da presença da temível criatura: um bosque completamente carbonizado, uma vaca que mancava, um galinheiro arrombado onde só restavam penas, um homem ferido com a cabeça ligada. Pouco depois parou. À sua frente estava uma caverna, enorme e escura. Dir-se-ia um corte no ventre da terra, uma ferida que sangrava trevas.
Hesitou. O covil da formidável fera fazia a sua decisão parecer mais tresloucada que corajosa . E se fugi... se retrocedesse para delinear um plano?
Subitamente, duas fogueiras acenderam-se em meio à escuridão e, por instantes, o rapaz julgou estar a olhar para as chamas do inferno. Só quando os dois pontos vermelhos se moveram é que compreendeu tratarem-se dos olhos do dragão.
– Quem está aí?
A voz era medonha. Parecia entranhar-se na carne e congelar o sangue e fazia o coração encher-se de medo e desespero. Era a voz da morte.
Ainda assim, não fugiu: as pernas não lhe obedeceram.
– Quem está aí? Que não tenha de perguntar novamente.
O rapaz conseguiu a custo impedir os joelhos de vergarem, mas a bexiga rebelou-se e as calças ganharam uma pouco abonatória cor amarelada.
– Sou... Bem... Fui... fui enviado... por... pelo rei...
– Pelo rei?
– Sim. Mas não quero incomodar. Posso voltar mais tarde.
Começava a afastar-se quando o monstro irrompeu da caverna, investindo a tremenda velocidade. Tentou empunhar a espada mas esta recusou deixar a segurança da bainha. A imensa criatura abriu a boca e o rapaz fechou os olhos, sabendo que estava morto.
– Porque demorastes tanto tempo? Pedi ajuda há mais de duas semanas! Foi horrível, horrível! Entraram na minha caverna à procura do tesouro e vasculharam tudo! Até dentro da minha boca espreitaram. E quando não descobriram nada, ameaçaram-me! Disseram que só não faziam um grande churrasco com a minha carne porque é muito rija!
– E…Espera... Esperai. – O cavaleiro, pálido devido ao susto, apalpava o corpo para se certificar que não faltava nenhum pedaço. – Estais a dizer que fostes atacado e pedistes auxílio ao rei?
– Precisamente! E sua majestade, em vez de reagir depressa e enviar um exército, demorou uma eternidade e mandou um... – A criatura estudou o rapaz de alto a baixo, obviamente pouco impressionado. Resolveu, no entanto, que seria contraproducente mostrar desprezo pelo seu salvador, por muito patético que parecesse – ...Um grande cavaleiro e o seu... – mirou o jumento que desbastava despreocupadamente o canteiro de um aldeão – ... magnífico corcel de guerra. Era o mínimo que podia fazer para ajudar quem lhe emprestou tanto dinheiro a um juro tão baixo!
O rapaz decidiu não ser conveniente esclarecer que o monarca pedira que o matasse e lhe levasse o resto do tesouro.
– Mas quem vos atacou?
– Os aldeões, claro! – Inclinou a cabeça na direcção de uma vila que se via lá ao fundo, no vale. – Quando bêbados, convencem-se que eu ainda escondo muito ouro... Cuidado! Lá vem o pior desses bandidos! – O tom de voz do dragão adquiriu um tom aflitivo. – Esse aí costuma atar-me arbustos em chamas à cauda, atirar-me pedras e puxar-me os bigodes. No outro dia disse que tinha um segredo para partilhar e quando me baixei espetou-me um dedo no olho. É um demónio!
O cavaleiro virou-se e deparou com uma rapariguita escanzelada de quatro anos que corria alegremente com um cãozito a latir a seu lado e que escarafunchava o nariz com um dedo sujo, levando as catotas à boca com evidente prazer. Naquele momento repararam no rapaz e no dragão: a miúda franziu o sobrolho, o rafeiro rosnou e a fera escondeu-se atrás do cavaleiro.
– Não a deixes fazer-me mal – ganiu o temível monstro.
A criança hesitou e depois empinou o nariz e continuou altivamente o seu caminho. O dragão suspirou de alívio e estendeu-se no solo, a gemer baixinho.
– Espera... estás a dizer que até uma ranhosinha te mete medo?! Julguei que os dragões fossem temido por todos, que destruíssem tudo com o fogo que lançam da boca.
– É verdade que na minha juventude era conhecido como «flagelo das terras baixas» e «morte com asas». – O seu focinho adquiriu uma expressão saudosista. – Mas isso foi há muitos séculos, antes de os meus dentes apodrecerem e caírem – arreganhou os lábios e revelou uma boca desdentada – e antes de sofrer de reumatismo – tentou estender as asas e não conseguiu. – Quanto ao fogo, desde que me constipei no último inverno que não consigo mais que isto. – Inspirou fundo e expirou furiosamente. Da sua boca saiu um fio de fumo que depressa se dissipou no ar frio da montanha. Tentou de novo e foi acometido de um violento ataque de tosse.
– E a fama de devoradores de homens?
– Vê-se que nunca mordestes um dos vossos vizinhos. Contam-se pelos dedos de uma mão – estendeu uma pata com seis garras – as vezes que tomais banho na vida. Tentes tanta sujidade em cima que é pior que comer amêijoa mal lavada. Para além disso, a carne humana é rija e sabe mal. Claro que demolhada durante três dias e temperada com orégãos e rosmaninho, ou acompanhada com molho Roquefort até é... – O dragão notou a expressão carrancuda do outro e mudou rapidamente de assunto. – Não interessa. Ides, então, ajudar-me?
– Ajudar-te? Não sei se não me estarás a mentir...
– A mentir? Porque dizeis isso?
– Por exemplo, passei por um bosque carbonizado...
– Ah! Isso – o dragão olhou em redor para se certificar que a informação confidencial que se preparava para revelar não caía nos ouvidos errados – foi obra do Pedro, o padeiro, filho do velho Afonso. Insistiu que ia fazer um churrasco na floresta e não só não deu ouvidos a quem o tentou dissuadir como ignorou os conselhos para, ao menos, limpar o chão de caruma antes de acender a fogueira. É teimoso como uma mula e quanto mais o avisam mais obstinado se torna. Como na tourada de São Crispim, quando entrou na arena para pegar um touro negro com uns cornos gigantescos, uma besta que metia medo só de olhar. O Zé Manel, aquele cuja mulher fugiu com o padre e o deixou com um rebanho de crianças para cuidar, se bem que se comenta que nem todas são filhas dele, e o Velho Tó, que há dias se bateu com o Zeca das Cabras por andarem ambos embeiçados da Maria Prazeres, que todos sabem andar perdida de amores pelo Martinho, bem lhe disseram...
– Pronto, pronto, já percebi! Pronto! E a vaca coxa? Vais-me dizer que não foste tu que a feriste quando a tentaste comer?
– Esse animal estúpido! Farto-me de pedir à Dona Ressurreição para a fechar no curral à noite, mas a cunhada, a Dona Conceição, convenceu-a que não há problema em deixá-la à solta. O resultado foi este. – Virou-se de costas para o cavaleiro, levantou a cauda e mostrou as marcas de uma marrada, presenteando-o também com um sonoro traque. – Perdoai, é a minha azia. Faz-me gases no intestino.
O rapaz encostou-se a uma árvore, meio asfixiado.
– E o galinheiro arrombado?
– Não tenho nada a ver com isso, as penas fazem-me alergia. Ninguém sabe quem foi, mas todos sabem que foi o Ti Chico, como vingança por o Zé Manel ter roubado o porco dele. Isto...
– Chega, chega! E o homem com a cabeça ligada…
– O Joaquim da Ovelha? Isso foi a Dona Alcina, a mulher, que um dia destes esperou por ele até às tantas da noite. Quando chegou a casa, bêbado...
O rapaz deixou de prestar atenção. E agora, que fazer com aquele dragão coscuvilheiro que vivia aterrorizado pelos vizinhos e cujo tesouro há muito fora pilhado? Tudo indicava que as galinhas do rei iriam continuar à mercê dos salteadores e ele... O quê? Não poderia casar com uma rapariga tão feia que fazia o seu pior pesadelo parecer um conto de fadas? Não teria o privilégio de ser esquartejado, sovado, insultado, devorado, espezinhado, esventrado e trucidado por uma princesa irascível e caprichosa? Não era essa magnífica recompensa que o fazia ficar, era querer ajudar o rei a resolver o problema do galinheiro, cumprir a promessa que fizera. Olhou para o dragão, que se enroscara a seus pés como um cachorrinho, um cachorrinho do tamanho de uma casa, e que continuava a debitar a sua história. Por mais que se esforçasse, não via solução...
De súbito, a sua face rasgou-se num sorriso.
– Cuidado! Já é a terceira vez que me pisas.
– Desculpa. Está muito escuro.
– Desculpa, não. Se não andasses colado a mim...
– Colado a ti? Eu não estou a...
– Estás, estás. Estás quase às minhas cavalitas.
– Às tuas cava?!...
– Calai-vos – sibilou um terceiro salteador. – Até os mortos acordam com... Que foi isto?
O bando parou e pôs-se à escuta. Silêncio. A imaginação começava a pregar-lhes partidas. Iam retomar a marcha para o galinheiro quando notaram dois pontos vermelhos que fendiam a noite e os fitavam com uma intensidade arrepiante.
– Quem vem lá? – troou uma voz na escuridão, um som ribombante e assustador, como que saído das profundezas da terra.
– Quem?... Quem está aí? – gaguejou o mais corajoso dos salteadores, com os dentes a tremelicar de medo.
– Ninguém, humano, ninguém – ronronaram as trevas. – Vem, aproxima-te.
Naquele momento a lua saiu de detrás das nuvens e iluminou um corpo monstruoso que terminava em patas com garras do tamanho de cimitarras e do qual saíam asas tão grandes que pareciam cravar-se no firmamento.
Os ladrões olharam uns para os outros, gritaram de pavor e fugiram.
– Resultou! Resultou mesmo! – exultou o rei.
– Quereis dizer que me reembolsareis agora o dinheiro que me deveis? – A voz do dragão transbordava de súplica. Que era um dragão sem um tesouro? – Posso fazer-vos um desconto e aceitar suaves prestações mensais com um período inicial de carência.
– Tenho de descontar o vosso alojamento e comida? – retorquiu o monarca, carrancudo. – E quem me garante que não comeis as galinhas? Julgo que vou reter o dinheiro que vos devo, como caução...
– Mas... Já vos disse que sou alérgico a penas. E os meus honorários por proteger o vosso galinheiro? E se renegociarmos o spread e vos conceder novo crédito a uma taxa promocional de quatro por cento? – ganiu o dragão.
– Vós estais falido e eu não posso pagar-vos de momento: estou em processo de consolidação orçamental.
– Processo de consolidação orçamental?
– Está na bancarrota – segredou o couteiro.
– Posso, no entanto, conceder-vos a exploração da estrada que vai da vila ao moinho – concedeu o rei, contrariado.
O dragão soltou pequenas baforadas de contentamento.
– Aceito. Construirei uma estação de serviço a meio caminho, com água e cevada para os animais, ferreiro para os cavalos e... e... Montarei portagens na ponte, nos cruzamentos e no portão da vila! Venderei chips para fixar nos chifres das juntas de bois que por lá passarem... Um por chifre... E por cada ovelha...
A enorme criatura arrastou-se, feliz, para o interior do celeiro que lhe fora dado para covil. Necessitava de tranquilidade para estimar os lucros.
– Agora vós, nobre cavaleiro. Como recompensa por me terdes salvo o galinheiro, concedo-vos a mão da minha filha. – Apontou para a princesa que, ela sim, fumegava de fúria. – Mas... – O rei olhou em redor, aflito. – Onde estais, valente herói?
– Vamos, Relâmpago, fiel corcel. Novas aventuras nos esperam. Mais monstros para combater, outras princesas para salvar.
– ...
– Imagina os tesouros que encontraremos, as riquezas que traremos para casa. Em frente, Relâmpago! Vamos cobrir-nos de glória!
– ...
– Relâmpago! Não me ouviste?
O jumento ignorou-o e continuou a pastar tranquilamente.
Livro «Jacaré»
Os excertos que se seguem foram retirados do livro. Algumas imagens estão no livro, outras não, mas todas estão relacionadas com o texto transcrito.
Sinopse do livro
Numa época de superstições, André, dominado pelo Diabo, parte dos Açores para São Tomé, e daqui numa viagem ao Novo Mundo em busca de um novo espírito entre os índios Tupi. JACARÉ foi o nome que os índios lhe atribuíram pela graça da sua possessão. Estranhos aqueles índios, que tiveram honras de Bula Papal de 1537. O papa Paulo III, vem reconhecer que, afinal, os índios também são seres humanos e não devem ser privados da sua liberdade ou dos seus pertences, mesmo que vivam à margem da fé Cristã.
JACARÉ proporciona a travessia do Velho Mundo, numa época de superstições e medos, ao Novo Mundo e às descobertas do Século XVI, derrubando ídolos, velhos mitos e salvando almas. André vivia isolado nas montanhas de São Miguel, Açores, e transportava um fardo terrível, um segredo que o poderia lançar nas garras da Inquisição: estava possuído por um Demónio.
A sua vida muda quando é acusado de homícidio e condenado, ao degredo, em São Tomé. Aqui, o seu segredo é finalmente descoberto e vê-se obrigado a fugir dos que o querem condenar à fogueira. Numa perseguição que se estende das florestas tropicais do Brasil, habitadas por ferozes índios canibais, às imensas cordilheiras dos Andes, onde a avançada civilização Inca trava uma luta sem quartel contra os conquistadores espanhóis liderados por Francisco Pizarro, até ao ajuste de contas final, em Macchu Pichu, uma cidade perdida nas montanhas, que guarda um fabuloso tesouro e onde Demónio, Cristãos e Incas se enfrentarão numa contenda sem misericórdia.
Alguém inspirou profundamente uma, duas, três vezes para ganhar coragem. De repente, o vulto correu para dentro da habitação e hesitou, ao mesmo tempo que atirava uma lança, que se cravou na parede oposta à de André.
Dois erros condenaram o atacante. O primeiro foi não ter contado que iria entrar de rompante numa divisão escura vindo do exterior. Os seus olhos tinham demorado demasiado tempo a ajustar-se à penumbra, o que o levara a hesitar e a atirar a lança às cegas. O outro erro foi ter subestimado a perícia de André. Ao ver o alvo em movimento, o seu cérebro parou e cedeu a vez ao instinto. Horas e horas de treino intensivo tomaram o comando das suas acções e, antes mesmo de pensar em apertar o gatilho, o negro estava morto, a sua cara atravessada por uma seta que o pregou a uma trave de madeira atrás de si. Estremeceu violentamente, o corpo a tentar segurar desesperadamente a vida que fugia, e imobilizou-se.
André levantou-se, aliviado. Nem queria acreditar que o seu pesadelo findara, que tudo se resolvera num piscar de olhos. A sua boca abriu-se num sorriso largo e feliz, o seu pesadelo… não terminara! O preto pregado à parede não era o seu escravo fugido! Pior, notou, horrorizado, este fora mais esperto do que o amigo e espreitava cautelosamente para dentro da cabana, adaptando assim os olhos à penumbra e reconhecendo o terreno.
André coxeou até onde tinha largado a besta e rodou freneticamente a manivela que puxava a corda para a posição de disparo. Pelo canto do olho viu o escravo entrar na cabana. Como era gigantesco, como estava diferente do farrapo humano franzino de fome que esmurrara fazia um ano. Ganhara músculo e carne, caminhava orgulhoso e altivo, e André, ainda assim, teve a sensação de que não estava no seu melhor, de que a vida no mato não devia ser fácil para o foragido, que no seu reino devia ter sido um guerreiro formidável. Soube de imediato que não iria conseguir. Pior, constatou que o negro também o sabia, pois sorriu ferozmente e levantou calmamente o braço para o trespassar com a lança.
Os seus olhos passearam pelo largo vale cortado ao meio por um rio de águas velozes, onde extensos milheirais ondulavam ao vento; pelos edifícios e terraços que trepavam pela encosta íngreme; pela fortaleza construída na vertente da montanha; pelo templo do Sol no seu interior, ainda em construção, pelas enormes pedras ali perto, à espera de serem inseridas na estrutura; pelas montanhas que se erguiam quase a pique de ambos os lados da cidade, Ollantaytambo, como se a povoação tivesse sido engolida pela cordilheira. Era o reduto da resistência Inca.
– Malditos sejam Huascar e Atahualpa – rugiu. – Foi por causa das suas acções tresloucadas que aqui estamos, em vez de em Cusco, o centro do mundo.
Chiaquitinta aproximou-se de outro prisioneiro, preso numa casa meio enterrada na encosta, e em cuja porta fora colocada uma grade.
– É verdade que o teu deus come ouro?
– Já te expliquei que as acções de alguns dos nossos soldados não constituem exemplo de todos os cristãos. Há muitos homens…
O Inca sorriu abertamente, deliciado. Aquele português que se recusava a trabalhar para os gentios, como dizia, divertia-o. Era o único motivo por que ainda conservava a vida. Por muitas vezes que o provocasse, por muitas vezes que repetisse a mesma pergunta, por muito absurdo que fosse o que dissesse, nunca se recusava a responder, retorquia sempre com a mesma seriedade.
– Não percebi o que me disseste no outro dia – cortou o Inca, muito divertido. – Jesus Cristo deixou-se matar como um lama porque tinha medo de Pilatos, certo?
Nuno enrubesceu.
– Não! – disse, veemente. – Morreu para nossa salvação, pagou o preço dos nossos pecados…
– Mesmo os da mãe?
– Qu… como?
– Não era prostituta?
Nuno agarrou as grades como se tivesse as mãos ao redor do pescoço de Chiaquitinta.
– Era virgem! Jesus foi concebido pelo Espírito Santo!
– Espírito Santo? Mas o marido de Maria não era José? Então Cristo era um bastardo?
Nuno levou as mãos à cabeça, como que para tirar a terrível blasfémia de dentro do crânio.
– Vais para o Inferno, herege!
– Para isso, era necessário que eu acreditasse nas vossas tolices, verme branco!
Quando os frutos acabaram, um índio de idade, completamente tatuado e com uma maça de madeira na mão, e dois guerreiros ricamente adornados com os típicos enfeites de penas, avançaram. Pararam a uma curta distância e o índio mais velho ofereceu a maça a um dos homens a seu lado, que a recebeu com grande solenidade. Em seguida, avançou de encontro aos prisioneiros. O marinheiro empertigou-se e exigiu:
– Soltem-me imediatamente, em nome do rei e de Deus! Estou farto das vossas brincadeiras!
Em resposta, o guerreiro avançou de maça erguida e largou uma torrente de palavras estranhas. O marinheiro nem piscou os olhos.
– Não percebi nada do que ladraste, selvagem! Exijo que me solteis imediatamente!
O guerreiro respondeu com palavras vigorosas, ao mesmo tempo que erguia a maça como se fosse atingir o marinheiro, que não se deixou impressionar.
– Já disse que não compreendi, cão maldito! Liberta-me imediatamente, gentio miserável!
O guerreiro respondeu com um grande esbracejar acompanhado de nova torrente de palavras estranhas e, de novo, ergueu a arma. Um dos índios que segurava a corda colocou uma maça nas mãos do marinheiro, que fitou o objecto com incompreensão e declarou, furioso:
– Já vos disse que estou farto das vossas brincadeiras! Estou farto de ser pintado e conduzido de um lado para outro! Soltem-me em nome de Deus! Soltem-me, senão juro por Cristo que…
Os índios nunca chegaram a saber que terrível destino teriam de suportar caso não libertassem o homem pequeno. A pancada atingiu-o em cheio na testa, esmigalhando-lhe parte do crânio e prostrando-o pelo solo. Estremeceu uma, duas vezes e imobilizou-se, a terra em redor a começar a tingir-se de vermelho. A multidão aplaudiu e assobiou, enquanto um grupo de mulheres avançou e recolheu rapidamente o cadáver.
O outro guerreiro recebeu a maça e avançou para André.
– Não fujas, cobarde! – trovejou Gaspar.
O espanhol ignorou os agradecimentos de Nuno, e lançou-se em perseguição ao Inca. Correu por ruas estreitas, subiu e desceu escadas, passou por socalcos, saltou por cima de fontes e… perdeu-o de vista.
– Cão traiçoeiro! – rugiu para as ruas desertas. – Já não ladras?
Pelo canto do olho, detectou movimento no interior de um edifício atrás de si. Cautelosamente, entrou numa estranha divisão. Numa parede, encontravam-se duas rochas não trabalhadas, uma quase na vertical e a outra meio deitada. No chão, no centro da sala, erguia-se uma pequena plataforma que afunilava numa das pontas e com um semi-círculo à frente.
A Gaspar, tudo isto passou despercebido. A sua atenção concentrou-se num ligeiro ruído, proveniente de algures.
– Não tenhas medo, cão – disse o espanhol. – Eu sei que sou muito mais forte do que tu, mas e se equilibrássemos as coisas?
Gaspar jogou fora o escudo e elmo.
– E assim, já te sentes com mais coragem, cão?
Somente o silêncio lhe respondeu.
– Ainda não?
Despiu a armadura de algodão endurecido, a camisa e o manto, ficando só de tanga, roubada a um índio que matara quando rasgara as calças e gibão em combate, muito tempo atrás.
– E se for assim?
Silêncio.
Gaspar riu com prazer.
– Também não, cão cobarde?
Jogou fora a espada e empunhou o punhal.
– E agora?
Silêncio.
Gaspar soltou uma gargalhada.
– Que queres, cobarde? Que crave o punhal no estômago? Terei de fazer o serviço por ti, cão gentio?
Um ruído atrás de si fê-lo voltar-se. Chiaquitinta fitava-o com olhos inchados de ódio. Avançou alguns passos, parou e jogou fora a maça.
– Matastes o meu filho em Cajamarca – despiu a túnica revestida com placas de ouro e prata. – Deixaste-lo, para servir de pasto aos condores – retirou a armadura revestida com algodão endurecido. – Pois hoje, serei eu que te sacrificarei a esse gigante dos céus – tirou o elmo decorado com exuberantes penas de pássaros. – Estás a ver essas pedras aí atrás? Têm o formato das asas dele. E isto, no chão, simboliza o bico – empunhou um punhal de bronze endurecido. – Estás no templo do Condor, e hoje vingarei o meu filho.
– Se lutares tanto como falas, não tenho dúvidas disso.
Chiaquitinta sorriu e avançou.
Livro «Chichen Itza - A Fonte da Juventude»
Os excertos que se seguem foram retirados do livro. Algumas imagens estão no livro, outras não, mas todas estão relacionadas com o texto transcrito.
- Este é o meu filho muito amado - disse um Mexica equipado com uma simples armadura de algodão, tanga e sandálias. Conduzia um guerreiro Tlaxcalan para junto da pedra sacrificial. Acariciava a sua longa trança, como que a despedir-se de um velho amigo.
- Este é o meu pai muito amado - respondeu o índio.
Cortaram a corda que lhe prendia os pulsos. O Tlaxcalan adiantou-se, chegou à beira das escadas e bradou, ante a aprovação da plateia:
- Parto com orgulho! Em Tlaxcala cantarão o meu nome.
De seguida dirigiu-se à pedra cerimonial, onde os sacerdotes o aguardavam, inclinou a cabeça em direcção ao guerreiro que o capturara, num gesto de saudação, e, com expressão decidida, colocou-se em posição. Rapidamente quatro sacerdotes lhe seguraram as mãos e as pernas. Um quinto aproximou-se e ergueu uma faca de obsidiana.
Martin ouviu Alfonso suster a respiração, como se esperasse a qualquer momento que todos começassem a rir e a gozá-lo pela partida que lhe tinham pregado.
A faca mergulhou no tórax do guerreiro, que estremeceu ligeiramente. Com gestos rápidos e precisos, o sacerdote serrou o tórax e introduziu a mão dentro do peito aberto. retirou uma amálgama de músculo ainda a estremecer e Martin compreendeu que se tratava do coração ainda palpitante. Ergueu-o em direcção ao Sol, que pareceu brilhar mais intensamente, em aceitação pela oferenda, e pronunciou algo que Martin não compreendeu. De seguida jogou o órgão numa vasilha em forma de águia onde lhe pegou fogo. Ao mesmo tempo, dois sacerdotes agarraram no corpo do sacrificado e jogaram-no pelas escadas.
Alfonso, louco de terror, contorceu-se desesperadamente. Pelas suas pernas escorria um líquido castanho, com o qual, ao espernear, salpicou os guerreiros que o seguravam.
O sacerdote notou o movimento e fez sinal que seria o seguinte.
Juan de Grijalva olhava em volta enquanto corria.
«Onde estará o meu irmão?», perguntou-se. A última vez que o vira fora quando começara a correr e após uma pequena distância já não o encontrava. Olhou em redor, mas a escuridão impedia-o de perscrutar a mais de uma dezena de passos. Viu os amigos esvanecerem-se na noite e, frustrado por não conseguir acompanhar o andamento, estugou o passo. Evitou cautelosamente os caixotes, corpos e o cavalo que esperneava, foi empurrado por um soldado enorme, que resmungou algo, entre dentes, ouviu o som metálico de uma lança a ricochetear nas suas costas e quando deu por si encontrava-se prostrado por terra, levou as mãos à cabeça, para se proteger de um cavaleiro que passou a galope a poucos passos, pediu ajuda para se levantar a um grupo de seis besteiros e dois Tlaxcalan que passavam a correr, no que foi ignorado, espantou-se quando um deles foi violentamente projectado para trás, trespassado por uma longa lança e, no chão, estremeceu convulsivamente, de olhos transidos de terror, ergueu-se a custo, escarrou no ferido, como paga por não o ter ajudado, deu um passo, tombou de novo, fitou a perna, espantado pela traição, constatou que uma seta a trespassara, levantou-se de novo e coxeou lentamente, pediu novamente ajuda a um grupo de quatro soldados e um cavaleiro, que carregavam um ferido, no que foi de novo ignorado, viu um deles ser atingido por duas pedras, largar o companheiro, dar três passos cambaleantes e retomar a corrida, abandonando o ferido, que, prostrado no solo, gritou aflitivamente, caiu de novo quando este lhe agarrou o pé, a implorar por socorro, pontapeou-o no queixo, fazendo-o perder os sentidos, levantou-se, sentiu uma forte pancada no pé, coxeou debilmente e alcançou uma brecha.
Estacou.
O espaço encontrava-se atulhado de corpos, caixotes e detritos. Hesitou, sentiu uma mão agarrar-lhe o cotovelo, pelo canto do olho vislumbrou um Mexica, vestido somente com uma armadura, exibindo um longo corte na coxa, que lhe arrancara a tanga, deixando à mostra o sexo, esmagou- lhe o nariz com o cotovelo, notou mais índios a aproximarem-se e, sem escolha, jogou-se à água.
O peso do ouro puxou-o para baixo.
Debateu-se, conseguiu fincar os pés num cadáver, o que lhe permitiu assomar à superfície, deu três passos vacilantes sobre a ponte de corpos, escorregou e voltou a mergulhar nas águas frias, esbracejou freneticamente e, miraculosamente, conseguiu apoiar-se num caixote e novamente erguer-se acima da superfície e novamente mergulhar quando o caixote rebolou, esperneou e lançou os braços em redor, à procura de um ponto de apoio e, quando os seus pulmões estavam prestes a explodir, sentiu um par de mãos fortes agarrá-lo pelo braço e puxá-lo.
Cuspiu água e esfregou os olhos.
– Obrigado, companheiro – disse. – Pensei que ia ficar... – A frase morreu-lhe na garganta.
Cinco Mexica sorriam-lhe, como que a dizer-lhe que não necessitava de agradecer.
Internou-se ligeiramente na vegetação. Densa, muito densa. Mas há já algum tempo que preferia afastar-se um pouco, nunca se sabia se algum deles não tentaria algum golpe à traição enquanto estivesse com as calças em baixo. Além disso, sabia que não corria perigo: Tlacelel não o mataria, assim o dissera. Por enquanto.
Virou-se para verificar se não se afastara demasiado e sentiu-se cair. Gritou e esbracejou furiosamente, em busca de algo onde se agarrar. Fincou a mão numa raiz e assim ficou, pendurado, a baloiçar sobre um enorme poço circular. Olhou para baixo e viu a água a pouca distância. Ouvia as vozes dos companheiros que acorriam ao seu grito. Que fazer? Soltar-se?
Não teve de se preocupar em decidir: a raiz partiu-se e caiu. Atingiu a água de lado e foi engolido pelo poço. O impulso levou-o até ao fundo. Tacteou em redor, fincou os pés na rocha e impulsionou-se a custo para a superfície. Atingiu-a no limite, engoliu um pequeno sorvo de ar e foi de pronto sugado novamente pelas águas verdes. Tentou nadar, mas o peso da armadura e armas puxava-o para baixo. Libertou a espada e escudo mas, mesmo assim, não conseguiu emergir. Já com os pulmões a arder, decidiu mudar de estratégia. Deixou-se afundar e, assim que sentiu a rocha debaixo dos seus pés, deu o maior impulso que as suas pernas conseguiam. O esforço levou-o à superfície o tempo suficiente para aspirar uma pequena golfada de ar. Dedos invisíveis puxaram-no, irreversivelmente, para baixo. De novo deixou-se afundar e, de novo, forçou os seus músculos cansados a projectarem-no para a superfície. Falhou. Esbracejou furiosamente, mas não conseguiu mais que aguentar-se sem afundar, a pouco menos de um palmo da salvação, mão fora de água, a tactear o ar. Sentiu que não aguentaria mais tempo. Era o fim. Ouvia já a multidão em fúria que o esperava às portas do Inferno. Falhara, tão perto, tão perto, tão perto...
A enorme praça parecia deserta. Martin agarrou com mais firmeza o archote e deu uma pequena corrida até ao sopé do templo de Kukulkan.
Enorme. Magnífica. Imponente. Era ainda mais impressionante vista de perto, com as suas escadas quase a pique que desapareciam na escuridão. Circundou a pirâmide, como que à espera de permissão para subir.
Colocou um pé no primeiro degrau e, quando as gigantescas serpentes em pedra que guardavam a escadaria não se ergueram para o devorar, lançou-se templo acima, grato pela escuridão da noite, que não o deixava ver a distância até ao solo.
Com o coração a bater apressadamente, devido ao esforço e à excitação, alcançou a plataforma no topo. À sua frente erguia-se uma construção na qual vislumbrava uma porta ladeada por duas colunas maciças e na base das quais se encontravam duas cabeças de serpente em pedra. Teve a sensação que se preparava para entrar nas mandíbulas abertas de uma cobra gigante. Respirou fundo, benzeu-se e avançou.
Encontrava-se num curto corredor que antecedia uma pequena câmara. Ignorou aquele e, com duas passadas hesitantes, penetrou no espaço central. Notou de imediato dois pilares quadrados, com figuras esculpidas em todas as faces, cada qual suportando uma enorme trave de madeira, esculpidas com elaborados desenhos e que, por sua vez, amparavam o tecto que se erguia a uma altura de três homens. Aparte um pequeno bloco de pedra no centro da câmara, esta encontrava-se vazia.
Uma ligeira sensação de pânico invadiu-o. Onde estava a tal água? Teria sido enganado? Escrutinou criteriosamente as paredes, as colunas, o bloco de pedra. Nada. Onde? Onde? Ocorreu-lhe uma ideia. O compartimento era demasiado pequeno para o tamanho que apresentava visto de fora. E onde estavam as outras três portas? Saiu, rodeou a parede e penetrou numa das portas laterais. Um corredor, que desaparecia na esquina. Soltou uma pequena exclamação de triunfo. Certamente iria conduzi-lo a outra câmara. Dobrou a esquina e passou uma segunda porta, dobrou a esquina seguinte e alcançou a terceira, um pouco depois da qual o corredor terminava. Apeteceu-lhe gritar de frustração. Que imbecil construiria um corredor sem saída com três portas?
Impaciente, excitado, receoso, considerou outra hipótese: que estaria ali a fazer aquele estranho bloco de pedra? Não deveria ser ali que o cálice com a água devia estar exposto? Talvez... talvez num compartimento secreto! Para evitar que qualquer um se apoderasse da água! Certo de que encontrara a solução, saiu do corredor, percorreu a varanda que separava o templo da orla da pirâmide, passou as grossas colunas, atravessou o corredor e penetrou na câmara central.
Um tremendo golpe na têmpora prostrou-o por terra, quase o fazendo desmaiar. Antes que se pudesse levantar, sentiu um corpo poderoso sentar-se em cima de si e de pronto sofreu novo soco, desta vez em plena face.
De uma só vez, vêm os 3 para o Luxemburgo! :)
ResponderEliminarLuxemburgo? Finalmente, tornei-me um escritor internacional. Estou muito comovido... :-) Posso perguntar se os encomendou em alguma livraria? Na FNAC, talvez?
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