A Feia Adormecida
O cavaleiro segurou a espada com firmeza e aguardou. Não conseguia ver o guarda, mas ouvia os seus passos enquanto vasculhava a pequena arrecadação, à procura do intruso que julgava ter ouvido. Escondido entre as pipas de vinho, o herói vislumbrou a cara abrutalhada e maldosa do soldado que se aproximava do seu esconderijo e cheirou o seu hálito a cebolas e dentes podres. Viu dedos sujos de terra agarrarem a pipa atrás da qual se refugiara e preparou-se para combater.
– Ratos – resmungou o guarda no último instante.
Afastou-se apressadamente e saíu.
O cavaleiro embainhou a espada, coração aos pulos dentro do peito. Faltara pouco para ser descoberto, tão, tão perto do seu objectivo. Aguardou até o som de passos desaparecer e abriu a porta cuidadosamente. Espreitou para o curto corredor e não viu ninguém. Com passos decididos dirigiu-se ao lanço de escadas que o levaria ao último andar da torre do castelo, onde sabia estar aprisionada... Foi tomado de uma fúria cega e teve de parar para se acalmar. Haveria tempo para castigar os culpados, agora tinha de se apressar.
Subiu silenciosamente os degraus e parou um pouco abaixo da pequena câmara no topo. A pouca luz que conseguia espremer-se pela diminuta fenda na parede de pedra grossa que servia de janela revelava uma mesa ao centro, onde uma sentinela guardava a porta de um quarto que ocupava metade da câmara.
O herói estudou atentamente o guarda, o derradeiro obstáculo entre ele e o seu prémio. Esparramado desconfortavelmente na mesa, um fio de baba deslizava-lhe pela barba negra e suja e ressonava tão alto que dir-se-ia que uma tempestade entrara no seu estômago por engano. Dois garrafões de vinho vazios a seus pés juravam que poderiam passar ali as hordas de Gengis Cão que nem um músculo mexeria.
Avançou pé ante pé, imobilizou-se quando o guarda resmungou algo, coçou um sovaco e se ajeitou na periclitante cama, agarrou a maçaneta da porta e rodou devagar. Não estava trancada.
Entrou no quarto escuro e aguardou que os olhos se acostumassem à escuridão. Relutantemente, as trevas revelaram uma cama enorme, emoldurada por um dossel com cortinados de renda, onde jazia uma rapariga.
– É ela!
Aproximou-se cautelosamente, o coração a transbordar de alegria. Por fim, encontrava-a, a bela princesa enfeitiçada pela bruxa má, condenada a dormir eternamente até um belo príncipe – ele – a despertar com um beijo. Não lhe distinguia as feições, tapadas pelos longos cabelos louros, mas isso não o impediu de lhe depositar um beijo reverente nos lábios macios.
– Acordai, formosa dama. Eu vos liberto da maldição que vos amarra ao sono eterno.
A princesa abriu os olhos e sorriu para o príncipe.
– Sabia que viríeis, meu amado!
Deixou que o herói a ajudasse a levantar e caiu nos braços do seu destemido salvador. O casal, unido por um amor puro e infinito, beijou-se longamente. E viveram felizes para sempre.
Ou assim desejaria o cavaleiro.
Na verdade, o que aconteceu foi:
– Acordai, bela dama. Eu vos liberto...
A bofetada cortou-lhe a palavra e o lábio.
– Bandido! Canalha! Que espécie de tarado entra assim no quarto das pessoas?! Guardas! Socorro!
O herói agarrou a cabeça para parar o sino que lhe badalava dentro do crânio. Percebeu que uma cadeira se aproximava a grande velocidade da sua cabeça e, instintivamente, atirou-se ao chão.
– Gatuno! Ladrão! A atacar donzelas indefesas! Guardas! Acudi! Guardas! Eu já te digo!
A princesa agarrou uma vassoura esquecida a um canto e começou a malhar no intruso, que tentou lançar-se para debaixo da cama para fugir à furiosa investida. A precipitação fê-lo dar uma tremenda cabeçada na tábua do estrado e, com o solo a rodopiar em seu redor, rastejou para a toca.
– Cobarde! Bandalho! Sai daí! Guardas!
A porta escancarou-se e o rei e a rainha entraram de rompante, seguidos de uma manada de soldados. Um deles abriu as portadas da janela e revelou uma cena que os deixou boquiabertos: a princesa tentava desalojar um ladrão, escondido debaixo da cama, puxando-o pela perna, ao mesmo tempo que este se agarrava ao pé do enorme móvel com o desespero de um condenado à forca.
– Mas... que se passa aqui? – balbuciou o rei.
– Este bandido atacou-me enquanto eu dormia a sesta – explicou a princesa enquanto escarafunchava com o cabo da vassoura o espaço onde o intruso se escondera.
– Acho que já podes parar, filha. E vós, sai daí imediatamente.
– Não! Ela vai desfazer-me.
– Podemos fazer uma fogueira – sugeriu o couteiro do rei. – O fumo obrigá-lo-á a sair.
– Não creio que seja necessário.
– Com as lebres resulta sempre – resmungou aquele, afastando-se.
O monarca agachou-se e rosnou para o intruso:
– Sai, senão mando os guardas tirarem-vos daí.
O cavaleiro, algo tranquilizado por ver a princesa pousar a vassoura, rastejou para o centro do quarto, onde foi cercado pelos soldados.
– Explicai-vos!
– Sua... sua majestade... vim salvar a princesa que vive prisioneira neste castelo, aquela que comeu uma maçã enfeitiçada por uma bruxa que a lançou num sono profundo e do qual só acordará...
– Prisioneira?! Bruxa?! Aqui?! Quem te disse isso?
– Bem... talvez não especificamente aqui... Num castelo... Por aí... algures... – Revolteou a mão, assim explicando que se situava nas redondezas, ainda que não soubesse exactamente qual, mas que estava prestes a descobri-lo.
– Então... Entrais em todos os castelos que encontrais à procura dessa princesa?!
– Dito dessa maneira soa como se fosse uma grande tolice... – murmurou o intruso, envergonhado.
Os guardas riram e o rei aproveitou para estudar o homem diante de si. Bem, não um homem, mas um miúdo: o bigode ainda não passava de uma penugem que besuntara com graxa para parecer farfalhudo, da barba, nem sinal, o elmo não era mais que um tacho roubado numa qualquer cozinha, a armadura resumia-se a duas chapas de ferro amolgadas unidas com cordéis, a espada estava torta e roída pela ferrugem, o escudo consistia em três ripas meio apodrecidas tiradas a uma pipa de vinho e da cintura para baixo vestia umas calças esburacadas que deixavam entrever umas pernas brancas e escanzeladas.
O rapaz disfarçado de cavaleiro, por seu turno, estudava a princesa e também não estava impressionado. A luz do Sol revelava toda a sua gloriosa... fealdade. Uns dentes enormes que pareciam não caber na boca e lhe conferiam um aspecto equino dominavam-lhe a face, as pálpebras não abriam totalmente, como se tentassem esconder os olhos estrábicos, e uma juba enorme de cabelo eriçado coroava-lhe a cabeça. O rapaz fitava-a, boquiaberto, quando percebeu que o rei falava com ele.
– ...Não gostar de ver o meu castelo invadido desta maneira, acredito que as vossas... que as tuas intenções não eram más. – Presenteou o intruso com um olhar de pena. – Vou mandar um guarda acompanhar-te a casa.
– Sua... sua majestade... agradeço imenso, mas não é necessário. – Levou as mãos às orelhas, revelando o castigo que lá o esperava. – Posso ir sozinho.
– Se assim o desejas. Como vais embora? A pé?
– Não, majestade. Tenho o meu fiel corcel, Relâmpago, lá em baixo.
O rei espreitou pela janela.
– Referes-te ao jumento que está a pastar no jardim?
– As minhas buganvílias! – guinchou a rainha. E trotou para fora do quarto.
– Pai! Vais deixar este campónio ir assim, sem o castigar? – sibilou a princesa, estalando a queixada como se prestes a desfazê-lo à dentada. – Atacou-me!
O rei olhou para a rapariga e, como sempre, teve de fazer um esforço para não desviar o olhar de tão feia carranca. Era a sua filha mais nova, quase com vinte anos e ainda solteira. Os seus domínios eram pequenos, minúsculos, para ser mais exacto. Entalado entre dois reinos poderosos, ainda não tinha sido conquistado por nenhum deles por não ter nada que valesse a pena cobiçar. O pior a que se sujeitava era ser atravessado ocasionalmente pelos exércitos dos vizinhos quando os respectivos reis e nobres se enfadavam de caçar raposas e decidiam entreter-se com uma guerra. A pobreza do seu reino salvava-o da cobiça dos outros monarcas mas também fazia como que nenhum tivesse interesse em casar a prole com os seus descendentes, muito menos com aquela sua filha. Os príncipes dos outros reinos, sempre ansiosos por enfrentar os exércitos inimigos, tremiam de pavor com a perspectiva de enfrentar a princesa, dotada de uma cara celebremente feia, só equiparada ao seu terrível feitio.
– Pai! Exijo que o castigues! Estás a ouvir, pai?
O rei olhou para a filha, que o fitava com expressão zangada. Como estava farto de aturar aquele feitio caprichoso e mimado. Quem dera... Subitamente, uma ideia tresloucada bailou-lhe na mente.
– Miúdo... Nobre cavaleiro, julgo ter uma tarefa ao nível da tua... da vossa bravura.
O herói levantou o queixo e empinou o peito.
– Dizei, majestade. Não ousaria recusar qualquer pedido vosso, ainda que fosse ir ao inferno arrancar os chifres do Diabo, ou ao fundo do mar...
– É esse o espírito. E ainda sereis amplamente recompensado: dar-vos-ei a mão da princesa em casamento.
O cavaleiro olhou para a rapariga que o fitava como um touro enraivecido diante da capa do toureiro.
– Não sei...
– Compreendo. – O monarca deu-lhe uma palmadinha condescendente no ombro. – Pedirei a outro, então.
O herói espetou ainda mais o peito.
– Aceito! – Tentou empunhar a espada para tornar a proclamação mais dramática, mas a ferrugem prendeu a lâmina à bainha.
– Aceitas?! – uivou a princesa. – Aceitas?! Não vou casar com um plebeu malcheiroso! Recusa imediatamente! Não te atrevas! Como-te o fígado em paté! Faço cabidela com o teu sangue! Ouviste?! Recusa já!
– Vinde. – O rei conduziu o cavaleiro para fora do quarto. –vamos conversar aqui fora onde não há tanto barulho. Reparaste, certamente, que a minha filha gosta de vós.
– Gosta?!... Insultou-me!
– Ora – o monarca esboçou um gesto de desprezo –, todos sabemos que as mulheres gostam de se fazer difíceis.
– Ameaçou-me!
– Um exagero. Ela não gosta de arroz de cabidela. – Ao notar que o outro não parecia convencido, decidiu tentar outra abordagem. – Quanto à tarefa que tenho para vós, só ao alcance dos mais valentes...
O cavaleiro levou uma mão ao coração, pousou a outra no punho da espada, desta vez não ousando tentar desembainhá-la, jogou a cabeça para trás e anunciou com altivez:
– Considerai-a realizada.
– Perfeito! Assim que matardes o dragão que ate...
– D... D... Dra?... – gaguejou o rapaz. O seu peito murchou como um balão vazio.
– Sim, um dragão que vive nas montanhas e aterroriza o meu reino. Claro que se tiverdes medo...
O cavaleiro pôs-se em bicos de pés.
– Nunca! Só achei que fôsseis pedir algo mais digno da minha bravura que matar uma lagartixa gorda. Volto em breve com a cabeça do bicho.
– Para que quero eu uma cabeça de dragão? Para sujar tudo com sangue, espalhar cheiro a podre pelo castelo e atrair moscas, baratas e ratos? Trazei-me antes o seu tesouro.
– Tesouro?
– Evidentemente. Preciso desesperadamente de dinheiro para pagar horas extraordinárias aos soldados, para que vigiem o galinheiro à noite.
– Galinheiro?
– É onde se guardam as galinhas. Todas as noites várias são roubadas por falta de vigilância. Bem, espero ver-vos de volta daqui a uns dias. – E enxotou-o para fora do castelo.
O cavaleiro montou o jumento e dirigiu-se para a cordilheira ao longe. À medida que se aproximava, as povoações tornavam-se mais pequenas e menos frequentes e quando chegou ao sopé da montanha começaram a surgir vestígios da presença da temível criatura: um bosque completamente carbonizado, uma vaca que mancava, um galinheiro arrombado onde só restavam penas, um homem ferido com a cabeça ligada. Pouco depois parou. À sua frente estava uma caverna, enorme e escura. Dir-se-ia um corte no ventre da terra, uma ferida que sangrava trevas.
Hesitou. O covil da formidável fera fazia a sua decisão parecer mais tresloucada que corajosa . E se fugi... se retrocedesse para delinear um plano?
Subitamente, duas fogueiras acenderam-se em meio à escuridão e, por instantes, o rapaz julgou estar a olhar para as chamas do inferno. Só quando os dois pontos vermelhos se moveram é que compreendeu tratarem-se dos olhos do dragão.
– Quem está aí?
A voz era medonha. Parecia entranhar-se na carne e congelar o sangue e fazia o coração encher-se de medo e desespero. Era a voz da morte.
Ainda assim, não fugiu: as pernas não lhe obedeceram.
– Quem está aí? Que não tenha de perguntar novamente.
O rapaz conseguiu a custo impedir os joelhos de vergarem, mas a bexiga rebelou-se e as calças ganharam uma pouco abonatória cor amarelada.
– Sou... Bem... Fui... fui enviado... por... pelo rei...
– Pelo rei?
– Sim. Mas não quero incomodar. Posso voltar mais tarde.
Começava a afastar-se quando o monstro irrompeu da caverna, investindo a tremenda velocidade. Tentou empunhar a espada mas esta recusou deixar a segurança da bainha. A imensa criatura abriu a boca e o rapaz fechou os olhos, sabendo que estava morto.
– Porque demorastes tanto tempo? Pedi ajuda há mais de duas semanas! Foi horrível, horrível! Entraram na minha caverna à procura do tesouro e vasculharam tudo! Até dentro da minha boca espreitaram. E quando não descobriram nada, ameaçaram-me! Disseram que só não faziam um grande churrasco com a minha carne porque é muito rija!
– E…Espera... Esperai. – O cavaleiro, pálido devido ao susto, apalpava o corpo para se certificar que não faltava nenhum pedaço. – Estais a dizer que fostes atacado e pedistes auxílio ao rei?
– Precisamente! E sua majestade, em vez de reagir depressa e enviar um exército, demorou uma eternidade e mandou um... – A criatura estudou o rapaz de alto a baixo, obviamente pouco impressionado. Resolveu, no entanto, que seria contraproducente mostrar desprezo pelo seu salvador, por muito patético que parecesse – ...Um grande cavaleiro e o seu... – mirou o jumento que desbastava despreocupadamente o canteiro de um aldeão – ... magnífico corcel de guerra. Era o mínimo que podia fazer para ajudar quem lhe emprestou tanto dinheiro a um juro tão baixo!
O rapaz decidiu não ser conveniente esclarecer que o monarca pedira que o matasse e lhe levasse o resto do tesouro.
– Mas quem vos atacou?
– Os aldeões, claro! – Inclinou a cabeça na direcção de uma vila que se via lá ao fundo, no vale. – Quando bêbados, convencem-se que eu ainda escondo muito ouro... Cuidado! Lá vem o pior desses bandidos! – O tom de voz do dragão adquiriu um tom aflitivo. – Esse aí costuma atar-me arbustos em chamas à cauda, atirar-me pedras e puxar-me os bigodes. No outro dia disse que tinha um segredo para partilhar e quando me baixei espetou-me um dedo no olho. É um demónio!
O cavaleiro virou-se e deparou com uma rapariguita escanzelada de quatro anos que corria alegremente com um cãozito a latir a seu lado e que escarafunchava o nariz com um dedo sujo, levando as catotas à boca com evidente prazer. Naquele momento repararam no rapaz e no dragão: a miúda franziu o sobrolho, o rafeiro rosnou e a fera escondeu-se atrás do cavaleiro.
– Não a deixes fazer-me mal – ganiu o temível monstro.
A criança hesitou e depois empinou o nariz e continuou altivamente o seu caminho. O dragão suspirou de alívio e estendeu-se no solo, a gemer baixinho.
– Espera... estás a dizer que até uma ranhosinha te mete medo?! Julguei que os dragões fossem temido por todos, que destruíssem tudo com o fogo que lançam da boca.
– É verdade que na minha juventude era conhecido como «flagelo das terras baixas» e «morte com asas». – O seu focinho adquiriu uma expressão saudosista. – Mas isso foi há muitos séculos, antes de os meus dentes apodrecerem e caírem – arreganhou os lábios e revelou uma boca desdentada – e antes de sofrer de reumatismo – tentou estender as asas e não conseguiu. – Quanto ao fogo, desde que me constipei no último inverno que não consigo mais que isto. – Inspirou fundo e expirou furiosamente. Da sua boca saiu um fio de fumo que depressa se dissipou no ar frio da montanha. Tentou de novo e foi acometido de um violento ataque de tosse.
– E a fama de devoradores de homens?
– Vê-se que nunca mordestes um dos vossos vizinhos. Contam-se pelos dedos de uma mão – estendeu uma pata com seis garras – as vezes que tomais banho na vida. Tentes tanta sujidade em cima que é pior que comer amêijoa mal lavada. Para além disso, a carne humana é rija e sabe mal. Claro que demolhada durante três dias e temperada com orégãos e rosmaninho, ou acompanhada com molho Roquefort até é... – O dragão notou a expressão carrancuda do outro e mudou rapidamente de assunto. – Não interessa. Ides, então, ajudar-me?
– Ajudar-te? Não sei se não me estarás a mentir...
– A mentir? Porque dizeis isso?
– Por exemplo, passei por um bosque carbonizado...
– Ah! Isso – o dragão olhou em redor para se certificar que a informação confidencial que se preparava para revelar não caía nos ouvidos errados – foi obra do Pedro, o padeiro, filho do velho Afonso. Insistiu que ia fazer um churrasco na floresta e não só não deu ouvidos a quem o tentou dissuadir como ignorou os conselhos para, ao menos, limpar o chão de caruma antes de acender a fogueira. É teimoso como uma mula e quanto mais o avisam mais obstinado se torna. Como na tourada de São Crispim, quando entrou na arena para pegar um touro negro com uns cornos gigantescos, uma besta que metia medo só de olhar. O Zé Manel, aquele cuja mulher fugiu com o padre e o deixou com um rebanho de crianças para cuidar, se bem que se comenta que nem todas são filhas dele, e o Velho Tó, que há dias se bateu com o Zeca das Cabras por andarem ambos embeiçados da Maria Prazeres, que todos sabem andar perdida de amores pelo Martinho, bem lhe disseram...
– Pronto, pronto, já percebi! Pronto! E a vaca coxa? Vais-me dizer que não foste tu que a feriste quando a tentaste comer?
– Esse animal estúpido! Farto-me de pedir à Dona Ressurreição para a fechar no curral à noite, mas a cunhada, a Dona Conceição, convenceu-a que não há problema em deixá-la à solta. O resultado foi este. – Virou-se de costas para o cavaleiro, levantou a cauda e mostrou as marcas de uma marrada, presenteando-o também com um sonoro traque. – Perdoai, é a minha azia. Faz-me gases no intestino.
O rapaz encostou-se a uma árvore, meio asfixiado.
– E o galinheiro arrombado?
– Não tenho nada a ver com isso, as penas fazem-me alergia. Ninguém sabe quem foi, mas todos sabem que foi o Ti Chico, como vingança por o Zé Manel ter roubado o porco dele. Isto...
– Chega, chega! E o homem com a cabeça ligada…
– O Joaquim da Ovelha? Isso foi a Dona Alcina, a mulher, que um dia destes esperou por ele até às tantas da noite. Quando chegou a casa, bêbado...
O rapaz deixou de prestar atenção. E agora, que fazer com aquele dragão coscuvilheiro que vivia aterrorizado pelos vizinhos e cujo tesouro há muito fora pilhado? Tudo indicava que as galinhas do rei iriam continuar à mercê dos salteadores e ele... O quê? Não poderia casar com uma rapariga tão feia que fazia o seu pior pesadelo parecer um conto de fadas? Não teria o privilégio de ser esquartejado, sovado, insultado, devorado, espezinhado, esventrado e trucidado por uma princesa irascível e caprichosa? Não era essa magnífica recompensa que o fazia ficar, era querer ajudar o rei a resolver o problema do galinheiro, cumprir a promessa que fizera. Olhou para o dragão, que se enroscara a seus pés como um cachorrinho, um cachorrinho do tamanho de uma casa, e que continuava a debitar a sua história. Por mais que se esforçasse, não via solução...
De súbito, a sua face rasgou-se num sorriso.
– Cuidado! Já é a terceira vez que me pisas.
– Desculpa. Está muito escuro.
– Desculpa, não. Se não andasses colado a mim...
– Colado a ti? Eu não estou a...
– Estás, estás. Estás quase às minhas cavalitas.
– Às tuas cava?!...
– Calai-vos – sibilou um terceiro salteador. – Até os mortos acordam com... Que foi isto?
O bando parou e pôs-se à escuta. Silêncio. A imaginação começava a pregar-lhes partidas. Iam retomar a marcha para o galinheiro quando notaram dois pontos vermelhos que fendiam a noite e os fitavam com uma intensidade arrepiante.
– Quem vem lá? – troou uma voz na escuridão, um som ribombante e assustador, como que saído das profundezas da terra.
– Quem?... Quem está aí? – gaguejou o mais corajoso dos salteadores, com os dentes a tremelicar de medo.
– Ninguém, humano, ninguém – ronronaram as trevas. – Vem, aproxima-te.
Naquele momento a lua saiu de detrás das nuvens e iluminou um corpo monstruoso que terminava em patas com garras do tamanho de cimitarras e do qual saíam asas tão grandes que pareciam cravar-se no firmamento.
Os ladrões olharam uns para os outros, gritaram de pavor e fugiram.
– Resultou! Resultou mesmo! – exultou o rei.
– Quereis dizer que me reembolsareis agora o dinheiro que me deveis? – A voz do dragão transbordava de súplica. Que era um dragão sem um tesouro? – Posso fazer-vos um desconto e aceitar suaves prestações mensais com um período inicial de carência.
– Tenho de descontar o vosso alojamento e comida? – retorquiu o monarca, carrancudo. – E quem me garante que não comeis as galinhas? Julgo que vou reter o dinheiro que vos devo, como caução...
– Mas... Já vos disse que sou alérgico a penas. E os meus honorários por proteger o vosso galinheiro? E se renegociarmos o spread e vos conceder novo crédito a uma taxa promocional de quatro por cento? – ganiu o dragão.
– Vós estais falido e eu não posso pagar-vos de momento: estou em processo de consolidação orçamental.
– Processo de consolidação orçamental?
– Está na bancarrota – segredou o couteiro.
– Posso, no entanto, conceder-vos a exploração da estrada que vai da vila ao moinho – concedeu o rei, contrariado.
O dragão soltou pequenas baforadas de contentamento.
– Aceito. Construirei uma estação de serviço a meio caminho, com água e cevada para os animais, ferreiro para os cavalos e... e... Montarei portagens na ponte, nos cruzamentos e no portão da vila! Venderei chips para fixar nos chifres das juntas de bois que por lá passarem... Um por chifre... E por cada ovelha...
A enorme criatura arrastou-se, feliz, para o interior do celeiro que lhe fora dado para covil. Necessitava de tranquilidade para estimar os lucros.
– Agora vós, nobre cavaleiro. Como recompensa por me terdes salvo o galinheiro, concedo-vos a mão da minha filha. – Apontou para a princesa que, ela sim, fumegava de fúria. – Mas... – O rei olhou em redor, aflito. – Onde estais, valente herói?
– Vamos, Relâmpago, fiel corcel. Novas aventuras nos esperam. Mais monstros para combater, outras princesas para salvar.
– ...
– Imagina os tesouros que encontraremos, as riquezas que traremos para casa. Em frente, Relâmpago! Vamos cobrir-nos de glória!
– ...
– Relâmpago! Não me ouviste?
O jumento ignorou-o e continuou a pastar tranquilamente.
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